Bem-vindos de volta ao nosso cantinho do terror. O conto de hoje é sobre um trabalhador comum que se depara com um assassino em sua volta para casa. Em quem você pensaria se estivesse prestes a morrer? Bons arrepios!
Bem-vindos de volta ao nosso cantinho do terror. O conto de hoje é sobre um trabalhador comum que se depara com um assassino em sua volta para casa. Em quem você pensaria se estivesse prestes a morrer? Bons arrepios!
Boas-vindas a mais um conto da coluna Arrepios. O quanto do nosso folclore está hoje em alta na literatura nacional? Muitas séries, livros e canais sobre o assunto vem crescendo com o aumento pelo interesse em nossa cultura, contando e recontando histórias fantásticas e completamente diferentes uma das outras como só um país continental poderia criar. Mas, e se uma dessas histórias tivesse um final diferente, digamos, aterrorizante? Bons arrepios…
O chicote cortava o ar com uma velocidade tão alta que o rompimento da barreira do som fazia o ouvido zumbir. Semelhante a uma dama que, desnudada de suas inibições, se abre e deixa a pele à mercê dos desejos carnais, cada corte que se abria nas costas do negrinho fazia o fazendeiro urrar de prazer. O sorriso no rosto só desapareceu depois que as chicotadas não mais provocavam o efeito esperado.
O fazendeiro, não satisfeito com as profundas lacerações que seus golpes infringiram ao garoto, chutou as costelas visivelmente demarcadas pela fina camada de pele, expressão da fome, até escutar os ossos se quebrando.
— Vais aprender a não perder mais meus cavalos — ameaçou, cuspindo no menino. — Preto desgraçado, tu vais morrer! — E o arrastou pelas pernas até um formigueiro próximo.
Acompanhado de indiferença e um cigarro de palha, observou as formigas atacarem os machucados. Famintas, penetravam os orifícios descobertos e se embrenhavam no cabelo crespo e volumoso.
Percebendo que a morte abraçava o alvo de seu desgosto, o fazendeiro dirigiu-se para o casarão no meio dos milhares de hectares, onde predominava a criação de gado. A porta, centralizada com os batentes em azul, combinava com o branco encardido das paredes.
Pegou sua cuia e despejou a água quente na erva moída. Apreciou o chimarrão como um guerreiro romano gozava o sucesso de uma sangrenta batalha, mas, ao contrário de coragem e honra, essa foi uma vitória obtida brandindo a espada da covardia.
Atenta ao fogão, de costas, sua esposa preparava algo para comerem. Aproximou-se de sua orelha para provocá-la, mas o corpo dela tremeu em uma risada infantil e traiçoeira. Virando-a depressa, percebeu estar segurando o negrinho. Ele sorria como se estivesse em paz.
— Bah, tchê, tu não morres? — balbuciou confuso. O corpo fraco e raquítico não exibia qualquer vestígio de ferimento.
Apanhou a faca sobre a pia e golpeou o menino. A cada vez que afundava a lâmina na carne vulnerável, um sentimento de vingança e prazer o invadia, fazendo seus pelos arrepiarem.
Olhou para o rosto do menino e, debaixo de todo aquele sangue, ainda enxergou o mesmo sorriso pacífico que o irritava.
— Vamos ver o que tu podes fazer sem cabeça — disse, logo cortando o pescoço do negrinho.
A faca rasgou os músculos, cortou artérias e encontrou resistência nos ossos, mas a ira motivava o fazendeiro. Ergueu a cabeça decapitada e começou a rir.
— Esta fazenda é minha e preto nenhum vai me desafiar! — E encarou o rosto ensanguentado em sua mão.
Deixou a cabeça cair e a chutou para longe ao perceber que o sorriso ainda estava ali. Mesmo sem alguns dentes, com os olhos esfaqueados e parte do nariz arrancado, aqueles lábios ainda irradiavam paz. Aquilo o estava enlouquecendo.
Arfando em revolta, o fazendeiro sentiu-se vingado por fazer o negrinho pagar com a vida a audácia de vestir as roupas de sua esposa, a única pessoa por quem nutria sentimentos. Naquele momento, a voz do seu capitão do mato soou da porta:
— Sinhozinho, vosmecê me disculpa incomoda, mas achei esse negrinho joga… — E um grito de pavor escapou do astuto sujeito, considerado um dos mais brutais da fazenda. Ele olhou para o corpo decapitado no chão, banhado em sangue, e se voltou para seu patrão de pé com a camisa tingida de vermelho.
O estancieiro, percebendo o negrinho nos braços do capitão do mato, se desesperou. Segura o choro para não se deixar ver em um momento de fraqueza, mas a vontade é de esbanjar o medo que cobre todos os seus ossos.
O menino estava novamente sem qualquer marca de chicote, a cabeça colada ao corpo. Apesar de desfalecido, ainda era possível sentir a energia boa que emanava dele.
No chão da cozinha, então, o estancieiro encontrou as pernas brancas de varizes marcadas saindo do vestido. Assustado, começou a tatear o chão à procura da cabeça. O ambiente de repente foi iluminado por velas, que pareciam traçar o caminho. Seguindo-as, a quase indistinguível face de sua esposa o aguardava.
Erguendo a cabeça dela e a abraçando, olha para o capitão do mato que, descrente da situação, ainda segurava o garoto. O fazendeiro pegou a faca com a qual matou a esposa e posiciona a lâmina sobre o próprio peito.
Antes de aplicar o golpe que o livraria da melancolia de matar o único facho de luz que seu sombrio coração enxergava, desceu os olhos até o rosto do negrinho nos braços do imóvel capitão do mato. O garoto abriu lentamente as pálpebras e, encarando o profundo da alma do estancieiro, soltou seu sorriso mais doce.
Bem-vindos nobres companheiros desta coluna situada na mais escura caverna literária. O conto deste mês é sobre uma das maldições mais conhecidas do mundo, e não poderia ficar de fora de nossa ode ao terror.. Arme-se com a adaga de prata e bons Arrepios.
Ela surgiu lá fora. Coerente na data, precisa no horário, vestida com o amarelo claro que ameaçava tornar-se um azul marinho infinito. Ele sentiu sua presença sem precisar olhar pela janela, como se um ímã o puxasse em sua direção, enquanto o livre arbítrio era sugado lentamente junto com o último raio do sol.
Acariciou o porta-retrato com as costas do dedo indicador e foi dominado por uma felicidade ironicamente triste: pelo menos, viveu o amor.
A beleza da amada era traduzida por aquela linda recordação palpável. Seus cabelos cacheados flutuavam livres por cima do ombro curvado e contrastavam com as orelhas pequenas e brilhantes com adornos doloridos de prata. Ele não entendia o porquê, mas os lábios finos e rosados eram o que mais lhe atraía.
O calor aconchegante e o aperto repetindo que dominavam seu peito não podiam desviar sua atenção: tinha um objetivo. Focado, deixou o porta retrato no chão frio daquele prédio abandonado, onde o passado o corroía como se suas lembranças estivessem encharcadas com ácido. Seu pecado, imutável, esquentava as artérias e aumentava o coração.
Não queria parar e pensar na decisão tomada há muito. A fraqueza o dominou na última tentativa, e sua covardia custou as lágrimas de sua adorada e ingênua esposa. Acreditava que seu destino era injusto e justo ao mesmo tempo, e essa confusão ocupava o cérebro, o distraindo do objetivo final.
Era estranho saber dos seus crimes, sem lembrar-se deles. Era estranho conhecer suas vítimas, sendo que às via pela primeira vez quando estavam mortas, despedaçadas, reconhecidas apenas por fotos nos jornais. Era difícil aceitar que aquilo era o destino, vil, cruel e hilário. Ele tinha sido o sorteado da vez, e o prêmio o seguia mês a mês, lua a lua, morte a morte.
E ela continuava o observando, calada. A cada centímetro vencido no céu, acelerava seus instintos e formigava suas pernas. Dominante, emitia a luz fraca que o cobria com o cinza da noite, e o excitava. Como o excitava.
Observou-os vencendo sua pele. Como um exército sem vida, testemunhou cada um deles surgindo em seu corpo, tomando para si seus braços, mãos, pernas e tronco. Sentiu o primeiro a aparecer, mas sabia que não sentiria o último. Era uma decisão tomada por uma maldição tenebrosa, assassina, soturna e absoluta.
Seu rosto, de certa beleza, era impossível negar, escondia um monstro sem coração e odioso. Ele também o odiava, mas fazia parte de seu ser. Era como odiar o sangue bombeado por seu coração.
A primeira pontada era sempre a pior. E, pelos seus cálculos, precisava esperar todos soldados brancos aparecerem armados em sua boca, para dar início ao seu plano. Pegou o objeto de prata guardado em seu bolso, e viu sua mão, dominada por pelos que cresciam um atrás do outro como uma marcha treinada, queimar.
Era uma dor com um propósito, então não se incomodou com ela, nem com o cheiro de carne queimada invadindo seu nariz, que tinha os minutos em seu rosto contados. Agachou-se, quando músculos saltavam em seus braços e costas. O uivo sutil cortando sua garganta foi seu aviso derradeiro.
A cruz de prata era grossa, pontiaguda e, infelizmente, muito bem esculpida. Sabia que, após o processo, a beleza de uma arte não significaria nada. Olhou para o porta-retrato mais uma vez, passou às costas do dedo, agora peludo e com uma garra amarela saltando do emaranhado, pela última vez.
Chorou. Nunca havia chorado enquanto se transformava, mas, naquele instante segundos antes de seu plano, ele chorou . Lembrou-se dos momentos maravilhosos que tiveram juntos e lembrou-se também do corpo de seu sogro encontrado quase totalmente devorado há exato um mês.
Puxou a cruz com as as duas patas e ela se abriu, revelando uma faca de prata. Mordeu o pedaço que protegia a lâmina e o engoliu com calma, enquanto sua garganta queimava terrivelmente. A dor lancinante fez com que seus joelhos fraquejassem, e a urgência emitiu seu aviso final.
O seu último uivo foi ouvido a dezenas de quilômetros de distância.
****
Transtornada, tentava não acreditar no que seus olhos viam. Nu, com pedaços de roupa espalhados por todo aquele cômodo abandonado, observava o covarde, o medroso, aquele que desistiu de tudo e a largou para trás. Jamais iria perdoá-lo por tamanha traição.
Os policiais cobriram seu corpo sem vida, colocaram a faca do crime em uma pequena bolsa de plástico e pediram para ela deixar o local. Uma psicóloga chegou a pedido do delegado, e a abraçou com carinho. Seria um longo caminho até que ela entendesse o porquê seu marido saudável, honesto e fiel a Deus cometera suicídio de uma maneira tão cruel.
A morte. Um rosto sem face e ao mesmo tempo repleto de semblantes, como uma avenida com infinitas pistas que levam até o mesmo inevitável destino. Vive no subconsciente até daqueles que mentem não temê-la. Um céu de paz, reencarnação, o vazio absoluto ou apenas energia reciclada ad aeternum pelo universo, nascemos com a certeza que teremos, no mínimo, uma grande dúvida por toda a vida.
O conto de hoje é sobre o fim. Bons arrepios!
Achei que fossem meus olhos embaçados ou minha mente ainda atordoada do tombo de moto. A imagem disforme lutava contra meus pensamentos raivosos direcionados ao maldito motorista que me fechou e fugiu, até finalmente me concentrar na figura esguia posta em minha frente.
É difícil não se sentir em um sonho. Olhar para aquele capuz, não preto como retratado em tantos filmes, mas repleto do vazio total. A caveira branco marfim com a expressão de um balde, e os dentes que parecem sempre ranger lhe dão um ar tenebroso e estranhamente familiar.
Ela apontou seus dedos finos e tão brancos como seus dentes em minha direção, oferecendo ajuda para que eu me levantasse. Fugi com pressa, tateando o chão e jogando o corpo para trás, enquanto ignorava meu joelho molenga e a fratura exposta na canela, que não emitia dor alguma, como uma holografia de mal gosto.
Olhei em volta e vi a avenida 23 de Maio rodeada de uma neblina que deixava tudo cartunesco. Os curiosos, e esses eu conheço bem, rodeavam meu corpo inerte no chão,
Minha querida moto estava a bons metros de distância, e o baú com os lanches jazia aberto próximo ao meio fio. Me veio a vontade de chorar, mesmo não entendendo como tristeza o que sentia. Era como uma angústia quente, grossa e grudenta descendo desajeitada por todo meu corpo, um sentimento de impotência formigando o rosto. Difícil descrever.
Comecei a aceitar o acontecido, e a figura esquelética parada no mesmo lugar mexeu um pouco o crânio em minha direção. Dois passos pesados causaram uma avalanche em minha coluna, e no ímpeto, me arrastei para trás impondo mais velocidade.
Sabia que meu corpo estava se afastando para o meio da neblina, mas tudo continuava no mesmo lugar. A imagem cada vez mais apagada da avenida e os curiosos, meu corpo imovel no chão coberto pela neblina, tudo me dava a impressão de se diluir aos poucos. Já os ossos de uma mão assustadora apontando em minha direção, essa parecia cada vez mais real.
Lembrei então de minha família. Esposa, filhos e minha querida mãe, que ainda estava sofrendo o luto após a morte do meu velho há poucos meses. Será que já sabiam? Alguém conseguiu telefonar? Ou os curiosos se mantinham alimentados apenas com o que sobrara de um trabalhador no início de um dia de trabalho? Fabiola sentiria minha falta? Diria para Miguel, Liz e Renatinha que o papai foi para o céu? Ou contaria a verdade? Se manteria viúva para sempre ou arrumaria logo um namorado e me esqueceria? E esse namorado, como iria tratar meus três filhos?
Minha vida parecia algo tão complexo e agora se resumia apenas a dezenas de curiosos, a morte ainda esticando a mão em minha direção e o medo grudado na garganta. Pensei na comoção que um homem morto poderia causar, quando perdi meus pensamentos ao observar dois moleques animados puxando o baú para longe. Todos meus sentidos morreram ao ouvir “Chegou a hora do lanche” e não distinguir se vinha dos jovens famintos, ou da criatura sem face em minha frente.
Para começar bem o ano de 2022, porque não um conto assustador de Natal? Na coluna Arrepios de hoje, descubra até onde vai as perversidades na cabeça de alguém “inocente”.
E um ótimo 2022 para todos nós!
Empinadora sempre foi a mais sentimental. Enquanto aliso seu corpo pela última vez, sempre no sentido do pelo, como ela gosta, sinto que se despede. Não sei se são os olhos brilhantes, o focinho mais gelado que o normal; talvez um suspiro que pode ser apenas mera respiração acelerada, após carregar o trenó por todos esses quilômetros, como deveria de ser.
Rudolph me observa e seu nariz piscando de forma mais fraca. Como se pressentisse o que acontecerá, rouba minha atenção. Tirei as amarras que as prendiam ao trenó, tentei fazer com que voassem livres, mas todas permanecem me olhando, em um silêncio triste e brutal.
As casas brasileiras são das mais complicadas de se entrar. Não fosse a falta de chaminés uma chateação suficiente, ainda tem os cachorros soltos, travas, portões altos e até alguns cacos de vidro e resto de garrafas concentrados por cima dos muros. Sentirei falta disso também, as calças rasgadas sempre fizeram a Dona Noel rir.
Toda a minha vida foi sabendo que esse dia chegaria. Uma maldição tão óbvia que estava escondida em sua simplicidade. Uma hora alguém iria entender que minha condição é assustadora: refém da vontade de crianças. Todas são vistas como ingênuas e doces, e em sua maioria realmente são. Mas, uma hora isso aconteceria, uma hora alguma jovem alma se corromperia e entenderia o seu poder. Bastavam as palavras certas, a estratégia certa. A vontade certa.
Enquanto adentro a casa usando umas das geringonças que os eficazes duendes criaram para abrir portas sem chamar atenção, repasso a cartinha do menino Márcio em minha cabeça.
Tudo bem calculado, palavra por palavra, frase por frase. Um conjunto de sílabas voltadas a um plano extremamente engenhoso, assim como a decoração natalina desta sala.
A árvore na parede oposta à porta, visível de todos os ângulos do ambiente, como deveria de ser. O pisca-pisca nem forte nem fraco demais, numa frequência tranquilizadora, quase sonífera. Botas de papel marchê espalhadas pela parede, conectadas por um fino cordão verde. O pequeno Papai Noel de pelúcia subindo uma escada que não leva a lugar nenhum.
O saco vazio em minhas costas quase não pesa nada. A última das últimas caixas que será entregue no dia 25 de dezembro de 2021, não ocupa espaço o suficiente para mostrar o volume que minhas fotos, desenhos e animações representam com tanta verdade. O saco vazio parece tristonho e cabisbaixo.
Retiro o embrulho azul, coloco a tampa de lado e o apoio no chão. O tamanho é exato, como deveria de ser, os duendes são perfeccionistas ao extremo. Sentirei saudades até de sua mania de limpeza e do incômodo que me causavam quando perguntavam insistentemente se eu precisava de algo mais antes de sair pelo mundo contemplando a minha maldição.
O adesivo plástico azulado que recobre a lâmina me causa certo arrepio ao puxá-lo. Lentamente, o meu reflexo deixa a lâmina avermelhada como se um borrão a pintasse. Retiro a base de madeira e a deito no chão. Coloco uma peça de metal que lembra um U sem as extremidades arredondadas sobre a base e parafuso ambas as partes para ficarem bem firmes. Encaixo a lâmina no espaço , respiro fundo e sorrio em um lapso de alegria ao notar que Misia, a chefe dos duendes e única que realmente sabia o que estava acontecendo, colocou uma bela almofada acolchoada para que meu pescoço ficasse confortável.
Refaço toda a operação, ganhando poucos segundos a mais, respirando o ar quente e sentindo o cheiro de chuva típico dessa época em São Paulo. Um sereno leve, suficiente para ensopar os pelos das renas. Dançarina era a que mais se incomodava.
Coloco minha cabeça no suporte, puxo a corda para a folha de metal afiadíssima subir e calculo o espaço certo para que o presente caia na caixa aveludada. Milimétrico, como deveria de ser.
Coloco a cartinha que recebi ao lado do presente e solto, enfim, a corda.
Querido Papai Noel,
Fui um ótimo menino, fiquei o ano todo sem causar confusão alguma. Duvidaram que eu conseguiria, todos achavam que eu era incontrolável, mas provei que estavam errados. Como a regra é clara, por não ter dado trabalho aos meus pais e ter sido um bom garoto (um ano longo), quero o meu presente e você não tem como negar. Foram vários anos sem ganhar uma meiazinha que fosse, vendo crianças e mais crianças felizes com algo que não me deram a opção de ter.
Agora ficarei como elas, todas seremos iguais. A injustiça será desfeita com um único presente:
Sua cabeça em uma caixa de veludo.
Feliz último Natal,
Marcinho.
Na Arrepios de novembro, temos o Folk Horror, um subgênero do terror fantástico que tive o enorme (des)prazer de conhecer quando criança, com um dos filmes mais assustadores que minha mente adulta consegue se lembrar (e que não ouso reassistir, não quero estragar essa terrível e alegre lembrança). Em Colheita Maldita, baseada no livro de Stephen King, somos levados para um vilarejo onde jovens, após assassinarem todos os adultos, usam o sangue humano para um bizarro ritual de colheita. Some ao enredo a dois desavisados vindos de outro estado e temos a receita do Folk Horror clássico. Talvez a obra mais famosa do gênero seja O Sacrifício, filme britânico de 1973 que ganhou um remake mais lembrado como comédia involuntária estrelando Nicolas Cage. Na safra mais recente de grandes obras de horror, A Bruxa (2015, dirigido por Robert Eggers) e Midsommar (2017, dirigido por Ari Aster) também abraçam o gênero.
Essas histórias são geralmente passadas em zonas rurais isoladas, onde as regras sociais nas quais estamos acostumados são distorcidas por regras próprias, voltadas a rituais cruéis em devoção a deuses pagãos. Com esse resumo simples e essa ideia na cabeça, escrevi o conto “Colheita”, que fecha a coluna Arrepios de hoje.
O milho não nasceu como deveria, não cresceu como deveria, não pintou nossos campos como deveria. As nossas bocas não foram alimentadas como deveriam, nossos senhores não ficaram felizes como deveriam.
A culpa, obviamente, é nossa. Pecados carnais. Talvez gula ou alguma outra ação humana indevida. Os deuses são cruéis, o deus da colheita é o mais cruel deles. Não que essa crueldade seja pejorativa, claro que não. O que esperávamos que nosso senhor, que nos alimenta, fizesse quando suas ovelhas, seres insignificantes que apenas estão vivos graças a sua benevolência, quebrassem as regras?
Regras simples: nossas vestimentas seguem as cores das camélias na primavera, dos fedegosos no verão, ipês no outono e do luto no inverno, em respeito às plantações que se perdem pelo angustiante frio que pulveriza nossos campos.
O inverno é a dor na carne do deus, ouso blasfemar, sua fraqueza, talvez a própria maldição. Por isso, nós também precisamos sofrer, sentir na pele essa desolação. Nada mais justo, nada mais honesto de nossa parte. Se a terra é castigada, por que nós não? Se até o Sol sofre as consequências dos invariáveis desejos dos quais não tenho coragem de questionar, por que restos de carne e osso se dizem contrários?
O pastor nos falou, agora há pouco, o sermão do crescimento e da alimentação. Nosso pastor sim sabe como honrar quem nos domina, tatuou todo o sermão e o mandamento da colheita em seu corpo, pois sabe que a carne não é nada sem o alimento, e o alimento não é nada sem o grande deus. Arrancou a camisa e rodou no próprio eixo, me obrigando a ler palavra por palavra da antiga língua que nos é ensinada desde pequenos, mesmo sem termos acesso aos livros sagrados.
Agradeci em voz alta essa benção, o privilégio de pronunciar santos refrões. Despida, tive o prazer incalculável de servir como papiro para o sermão do perdão, das desculpas, da aceitação. A melhor maneira de conversar com os deuses, disse o pastor, é mostrar que estamos dispostos a ceder nossos corpos em prol de um bem maior, um bem comum. Poucas pessoas são agraciadas com tamanha honra. Fico feliz.
Agora, observo todos dançando em torno, envolvidos com o aroma da bebida delirante e felizes pela certeza de que seremos atendidos. NUNCA os deuses recusaram nossa súplica, NUNCA nos deixaram sozinhos depois de uma crise alimentar tão devastadora. Não será hoje esse dia.
O calor cresce em minhas pernas e minha pele se umedece aos poucos. O canto ecoa pela noite, a bebida que tomei começa a fazer efeito e torna as roupas brancas e vermelhas em uma mistura rosa disforme, conforme meus olhos se enganam por trás do balançar das chamas, animadas com o ritual. O som da lenha estalando alimenta meu ouvido, enquanto agradeço em voz alta a chance de limpar a aldeia de tanto mal. O fogo que me consome consumirá também a fome do meu povo.
Assim espero.
O que acontece depois do fim do mundo? Eventos pós-apocalípticos são excelentes para criarmos enredos nos quais nem sempre o ambiente caótico e a dificuldade para sobrevivência são os fatores realmente importantes na trama.
Apesar de parecer um tópico distante, a destruição de tudo que nós conhecemos não está presa aos livros e filmes de Hollywood. Vivemos nossas vidas muitas vezes ignorando que um ataque nuclear, a fúria da natureza em resposta ao aquecimento global ou um meteoro em rota de colisão são possibilidades reais e, em alguns casos, já em andamento. Dependendo da sua crença, um evento apocalíptico não é só possível como já aconteceu. Afinal, uma inundação mundial que reduziu a humanidade a um barco com alguns animais nos torna sobreviventes de um pós-apocalipse bíblico. Ou até um em que os planos divinos não eram bem o esperado, como Neon Genesis Evangelion.
Uma doença que transforma 99% da população em vampiros (Eu sou a Lenda), uma bomba nuclear, monstros que se transformam em nossos piores medos (Caixa de Pássaros) ou a fúria da natureza, o final dos tempos transborda pela literatura e inunda nossas mentes. De maneira geniosa, nosso subconsciente trabalha contra a razão e se dilui em histórias de uma Terra devastada resumida a um punhado de sobreviventes lutando para não morrer. A coluna Arrepios deste mês tem um conto que mostra o que acontece quando a Terra perde a batalha contra o impossível, e tudo que resta é a selvagem vontade de sobreviver a qualquer custo. O que acontece depois do fim?
Garras
Detestava os sons de suas garras caminhando por entre o asfalto queimado ou as telhas de amianto tanto quanto detesto este silêncio. Meus ouvidos, outrora alarmes biológicos reprogramados para autodefesa, agora são simples pregadores de peças. O arrepio que costurava minha coluna era o convite para a morte, agora é o medo da solidão. Meu eu do passado riria ao saber dos meus pensamentos, mas antes a certeza do doloroso fim entre seus dentes afiados e indiferentes a essa mórbida rotina desesperançosa, na qual o único intuito de levantar-se pela manhã é ter o que comer e conseguir espantar o frio.
Acordar, notar-se ainda viva, sentir o cheiro de corpos apodrecidos mesmo a quilômetros de distância, receber o pedido da fome e só depois abrir os olhos. Mexer na cortina, me entristecer com o sol por trás da poeira que insiste em não sumir e torcer para não ver novamente o clarão azul que cruzou os céus e ficará gravado em minha retina para sempre.
Não tivemos muito tempo para pensar no impacto. Os milhões que morreram sem ao menos entender o acontecido são sortudos, e os invejo. Não viram a sociedade sucumbir em poucos dias, o caos tomar o controle dos governos e o ser humano ser resumido a selvageria e egoísmo. Não precisaram lutar para acumular mantimentos, tampouco descobrir que toda a destruição causada pela força imensurável do impacto não foi nada além de um pouso bem sucedido, carregado do fim.
Nossos cientistas morreram em vão, não encontraram pontos fracos, não descobriram maneiras de derrotá-los, não entenderam seu propósito e tampouco conseguiram mostrar se eram máquinas, seres ou demônios. Não sei dizer quão grande foram seus esforços, visto que muitos defendiam que a extinção seria causada pelo impacto e os cruéis alienígenas que vieram a seguir pareciam apenas querer antecipar o processo. Ou garantir que ele fora o suficiente.
A maioria das pessoas se rendeu ao temor indigesto causado pelo apocalipse anunciado por várias religiões. Alguns líderes surgiram e evocaram a palavra de Deus contra os “demônios do inferno” que ironicamente vieram do céu. Esses líderes sumiram com a mesma velocidade com que foram criados, lutaram contra, mas acabaram destroçados como cubos de gelo em um liquidificador.
Já não sou mais a mesma, sinto que não sou a mesma, não só pelos frangalhos borrados do meu psicológico, mas também com mudanças tristes que enxergo como evolução, Temo que meu corpo tenha enfim entendido que a reprodução não mais seja parte de seu caminho, desligando em definitivo a nascente de cor forte que mostrava que a humanidade poderia lutar contra a extinção. Chorei um dia por isso, um longínquo momento que tive segundos de paz para preocupar-me comigo mesma.
Agora foco meus pensamentos em não desistir. Procuro máscaras para me proteger da poeira, me enrolo em roupas que eu mesma faço para tentar lidar com o frio opressor. Onde antes havia calor e diversão, hoje é coberto por restos de tudo. O colorido das pessoas hoje é substituído pelo cinza infinito, cobrindo a terra como se o diabo confeitasse um bolo podre A preocupação constante com um teto ao observar as nuvens negras de chuva ácida controla meu êxodo sem destino. Antes os gritos, uivos ou que quer que fosse os sons horripilantes que pareciam contorcer meus timpanos me lembravam constantemente que eu estava viva. Agora, o torpor da falta de sentido queima meu ego, já enfraquecido por saber que só estou aqui por ser boa em me esconder. Nosso grupo teimou em enfrentar algo acima da nossa capacidade humana, lutando contra a morte em sua pura essência. Seres que não pareciam querer se alimentar, satisfazendo sua vontade apenas com o som de ossos quebrados e o silêncio abafado de gritos. Não mastigavam as vítimas, não sentiam remorso. Atacavam com a vontade de extinguir os humanos da Terra, selvageria pura e bem organizada.
Encontrei um oásis de puro ânimo, uma máquina de refrigerantes lotada. Um pouco de normalidade, cortando o silêncio deste prédio em ruínas por um som familiar que me traz memórias que normalmente só vem em sonhos. O vermelho da lata contrastando com o cinza úmido é estranhamente alegre, quase me dá vontade de sorrir. Sento em cima de entulhos indistinguíveis, aprecio o gás voltando pela minha garganta e o eco engraçado do arroto reverberando por metros e mais metros de concreto remoído, enquanto observo uma nova luz azul, muito maior que a primeira, cortar a atmosfera.
Horror cósmico. Muito associado — não equivocadamente — ao escritor H.P Lovecraft, esse subgênero teve seus tentáculos espalhados pelos rostos assustados dos leitores em histórias mais antigas, como a novela Who Goes There? de John W. Campbell Jr, que deu origem ao filme O Enigma de Outro Mundo, e outras histórias escritas por um dos autores mais clássicos do terror, Edgar Allan Poe.
Sem ter a intenção de ser didático e discutir com os historiadores que tem muito mais a acrescentar sobre a criação e evolução do horror cósmico do que eu, Lovecraft tornou-se o nome mais forte do gênero e criou pesadelos — indescritíveis ou não — por várias gerações.
O que mais me atrai no horror cósmico vai bem além dos monstros hercúleos que desafiam nossa sanidade. Meu fascínio é exatamente por saber que as criaturas abomináveis estão longe de ser o que nos faz temer o horror que vem das profundezas do universo. O medo palpável, o vento frio que entra por nossa orelha e reverbera por nossos pensamentos e a sensação de sermos apenas um ponto minúsculo numa galáxia que é um ponto minúsculo em um universo que ignora nossas vidas, problemas, boletos. Toda nossa busca por explicarmos nossa própria existência não é nada, nem tem sentido universal. Dentes afiados e tentáculos gosmentos não são tão assustadores como nossa real insignificância.
Foi com esse pensamento niilista que escrevi o conto Sede, uma pequena experiência de horror cósmico que contempla a nossa coluna deste mês. Bons arrepios e deixe seu comentário, ele é muito importante.
Surgiu no céu como se um novo sol se apresentasse bruscamente. A olho nu, era uma bola um pouco distorcida que corria pelo horizonte em alta velocidade. Um cometa, era o que os âncoras dos jornais berravam assustados.
Mas eu descartei ser algo do tipo, por não parecer cair e sim planar centenas de metros acima do mar que banhava o Rio de Janeiro. De onde eu observava — em segurança, por isso ainda respiro — era uma bola enorme e meio roxa, não parecia um OVNI, tampouco um veículo construído por nós. Peguei meu telescópio amador e só então pude entender o terror.
Ajustei o foco lentamente, rosqueando as lentes que teimavam em não capturar a criatura, como se nem algo inanimado conseguisse entender a vasta abominação abissal que fazia os crentes perderem a fé, enquanto ateus se agarravam à salvação. As engrenagens ajustavam a imagem borrada capturada pelas lentes, conforme meus dedos escorregaram pelo plástico barato. A ansiedade estremecia minhas mãos suadas, mas a curiosidade enfrentou bravamente o medo pungente deslizando quente por minhas veias.
Quando finalmente consegui visualizar tal figura abominável, foram meus sentidos que passaram a lutar contra a verdade. Nem no pior pesadelo minha mente conseguiria construir algo tão horrendo, nem se todas as minhas forças ficassem voltadas para o abismo do mal, nem se todos os demônios do inferno desenhassem obscenidades com sangue algo poderia ser tão indigesto.
Um olho enorme ocupava, centralizado, cerca de 50% do corpo daquela coisa. Sua pupila estava avermelhada, talvez pela entrada em nossa atmosfera, talvez puro sentimento de ódio demonstrado pelo o que pareciam veias com, calculei sem muita precisão, vários metros de diâmetro. A pupila, a princípio, parecia ter forma de um diamante retorcido, entretanto, minha percepção parecia errada conforme ela mudava de formato enquanto a criatura olhava para baixo, focada no mar de Copacabana lotado de banhistas desavisados, descrentes, desgraçados.
Conforme a massa percorria o céu, seu corpo se envolvia em uma espécie de líquido viscoso, protegendo-o do atrito. Seu enorme olho foi recoberto com o que poderíamos chamar de pálpebras, mas pareciam grandes toalhas alaranjadas e com certa transparência, lembrando uma gelatina grudenta, ou um tubarão monstruoso prestes a atacar.
Retirei meu olho direito da luneta e o esfreguei com certa dúvida. Respirei bem fundo. Segurei o ar em meus pulmões por alguns intermináveis segundos e voltei a observar o improvável. Um monstro? Alucinação? Algo completamente fora da minha percepção de possível, desumano. Faltam sinônimos para descrever com precisão tal visão.
Sentia minhas palavras embaralhar em meu cérebro, meu peito queimava em ansiedade, enquanto minhas pernas dançavam desrespeitosas, mesmo contra toda minha vontade. Senti-me vazio, pequeno, minúsculo. Uma pulga cavalgando um grão de areia em uma tempestade no deserto..
Sem nenhum sentido em minha decisão, voltei a investigar seu caminho. A coisa estava próxima à praia. Voou rasteira derrubando dezenas de prédios, trombou com o Pão de Açúcar, arrancando parte do topo como se fosse feito de massa caseira. Pousou desengonçadamente no oceano, fazendo com que uma espuma branca misturada com a água salgada voasse dezenas de metros.
A criatura se abaixou, seu olho foi substituído lentamente por uma bocarra vermelha, ganhando espaço em seu “rosto” como um eclipse infernal. Aos poucos a boca se abriu, dando espaço a dentes serrados e pontiagudos que pareciam girar no próprio eixo do animal.
Por alguns minutos aterradores, observei a água do mar desaparecer aos milhões de litros.
Atrás do monstro cósmico, a humanidade parecia paralisada por entre a poeira das construções destruídas, o vapor subindo do contato do mar com a pele gosmenta e o som que jamais irei esquecer, um assobio profundo que soprava o líquido salgado para matar a sede do pavor feito de qualquer coisa que não fosse carne e osso.
Observei carros de bombeiros tentando conter incêndios, ambulâncias perdidas entre corpos, o estado com mãos amarradas frente a todo caos que jamais conseguiremos explicar. E o absurdo permanecia alheio ao mundo em sua volta, sugando despreocupado o Atlântico inerte aos acontecimentos. Barcos, pranchas, peixes. Tudo entrava na máquina de moer e desaparecia pelo breu bordô que pouco tive coragem de explorar.
De repente, como se o eclipse terminasse, o globo ocular assustador foi tomando conta do que eu julgo ser a frente da criatura. Após instantes de puro frio na espinha e dúvidas quanto a minha sanidade, o horror impulsionado pelo movimento grotesco e fluido de algo como barbatanas em torno de seu corpo alçou voou, ignorando os corajosos jornalistas que observavam atônitos do alto de um helicóptero, uma mosca perto da monstruosidade galáctica.
Voou, planou, flutuou ou qualquer verbo que explique os movimentos certeiros e gosmentos que a possível asa criava ao balançar gosmento pelo ar. Cruzou a atmosfera e logo desapareceu de nossos rostos aterrorizados. Sumiu quase silenciosamente no horizonte e voltou para o universo, indiferente a humanidade abismada deixada para trás.
Em Arrepios, a nova coluna do blog da Jambô, vou trazer algumas experimentações com histórias de terror a partir de obras que me influenciaram. A ideia é fazer um exercício rápido em primeira pessoa sobre várias estéticas especializadas na arte de assustar. Neste mês, minha inspiração veio de leituras de Edgar Allan Poe, um dos mestres do horror gótico da Era Vitoriana, que causavam medo não por suas cenas assustadoras ou sanguinolência, mas pela criação de uma ambientação sombria, pelo encontro com o sobrenatural, com a morte e pelo desconforto que tudo isso causa nas pessoas. Clássicos do horror como Frankstein, Dracula e O Médico e o Monstro vem da mesma escola de horror, e autores mais atuais como Anne Rice, Shirley Jackson e Stephen King também contribuiram para o gênero no século XX. Os amantes de séries podem ver bons exemplos do gênero em A Maldição da Mansão Hill, inspirada em A Maldição da Casa da Colina, de Shirley Jackson, e, principalmente, A Maldição da Mansão Bly, inspirada no romance A Outra Volta do Parafuso, de Henry James.
Bons Arrepios!
Esses malditos passos que rondam minha cabeça como se fagulhas de uma fogueira se espalhassem por dentro do meu cérebro, impedindo-me de pensar em qualquer outra coisa que não seja esse ruído crespo, intenso e intermitente. A angústia da escuridão densa e absoluta quase me tira a sensação sufocante que ouso esquecer nos raros momentos de quietude. Aceitei, como não haveria de aceitar? É um destino tão cruel como inevitável, talvez injusto por todo o floreio que a vida faz, enquanto gastamos nosso tempo desviando da verdade imutável. O destino de todos é um abraço gelado e maciço, indiferente e final.
Os passos se cansam, ou minha mente me dá um segundo de paz, enquanto os instantes de sossego me lembram da claustrofóbica sensação tão impregnada como a fome, tão presente como o medo, tão azeda como a dor. A calmaria temporária faz com que meus pensamentos viagem a outras épocas, mesmo distorcendo rostos, lugares e sensações. Passeio por uma estrada escura, apenas uma fração do que eu já fui.
Quando estou prestes a montar o quebra-cabeça, tentando encaixar as confusas peças de minha nova existência, eles surgem novamente, como uma criança irritada atirando ao ar, com longos e estridentes berros, cada pecinha bem encaixada. Alguns calmos, outros acelerados. Todos os passos, e afirmo novamente, todos, vagueiam esperançosos, como se o destino final pudesse se modificar milagrosamente, enquanto a indecisão tomasse seu lugar no estranho tabuleiro sem texturas e tampouco um rei no qual a balbúrdia e a calmaria disputam palmo a palmo minha sanidade. Tolos dramáticos, lotados de fé e ao mesmo tempo céticos medrosos com o futuro que acreditam conhecer. Tolos, tolos… tolos.
Alguns momentos divertidos — assim os imagino, já que não me lembro mais qual a tonalidade certa dos meus sentimentos, quase todos cinzas como se o nada enfim tivesse cor — brotam como vultos em meio a solidão, frio e os passos que quase nunca se esvaem. Uso toda a força que mal tenho para procurar em meio ao caos de memórias borradas algo que faça me sentir brevemente feliz, esculpindo um ralo sorriso no duro semblante que imagino carregar.
Não sei se preciso de ar, tampouco como andam meus pulmões. Fico em dúvida se o movimento exagerado do meu tórax é causado pelo oxigênio quase inexistente ou espasmos involuntários oriundos da ansiedade. Tenho corpo, sei que tenho, mas não sinto que preciso, ou que ele reaja conforme minhas necessidades, que também não sei quais são. Um cérebro envolto em agonia, ou vontades soltas em um universo sombrio e sem sentido. Também luto para entender.
O tempo tornou-se indiferente. Não sei me dizer o quanto um segundo é demorado e como os dias passam voando. A sensação que permeia o campo infértil de minha mente é de uma ampulheta tentando escorrer um único grão maior que o milimétrico furo entre suas extremidades. Nada para pensar, pensando o tempo todo em coisa alguma, e de repente os passos batem como facas sem fio tentando cortar um bife grosso. Reverbera pelas paredes de minha moradia, multiplicando-se com a velocidade de um raio determinado.
Uma época do tempo esses passos me atormentam sadicamente. Durante esse período aparecem as centenas, talvez milhares, e batucam em um ritmo acelerado e desuniforme, galopando com cascos repletos de pequenos e afiados espinhos invisíveis. Neste ínterim, luto inutilmente contra a certeza que a frase engasgada em uma voz familiar, partindo não sei de onde e aos poucos digladiando contra todo esse mineral que me cerca, alcançando meus ouvidos e grosseiramente espancando meus tímpanos com brutalidade e verdade, me lembrado do que agora sou.
O sussurro familiar rasga meu peito, finalmente manchando minhas vistas e me mostrando que a dor vem com um tom vermelho escuro, criando a ilusão da mudança do meu infeliz paradigma. Consigo enfim prestar atenção, quando o cheiro de crisântemo, lágrimas, velas e terra brotam por onde um dia estiveram minhas narinas, enquanto ouço a voz cada dia menos chorosa e mais acomodada:
“Por que partiu tão cedo, meu amor?”