Arrepios — Negrinho

Arrepios — Negrinho

horror pós-apocaliptico

Compartilhe este conteúdo:

Boas-vindas a mais um conto da coluna Arrepios. O quanto do nosso folclore está hoje em alta na literatura nacional? Muitas séries, livros e canais sobre o assunto vem crescendo com o aumento pelo interesse em nossa cultura, contando e recontando histórias fantásticas e completamente diferentes uma das outras como só um país continental poderia criar. Mas, e se uma dessas histórias tivesse um final diferente, digamos, aterrorizante? Bons arrepios…


O chicote cortava o ar com uma velocidade tão alta que o rompimento da barreira do som fazia o ouvido zumbir. Semelhante a uma dama que, desnudada de suas inibições, se abre e deixa a pele à mercê dos desejos carnais, cada corte que se abria nas costas do negrinho fazia o fazendeiro urrar de prazer. O sorriso no rosto só desapareceu depois que as chicotadas não mais provocavam o efeito esperado.

O fazendeiro, não satisfeito com as profundas lacerações que seus golpes infringiram ao garoto, chutou as costelas visivelmente demarcadas pela fina camada de pele, expressão da fome, até escutar os ossos se quebrando.

— Vais aprender a não perder mais meus cavalos — ameaçou, cuspindo no menino. — Preto desgraçado, tu vais morrer! — E o arrastou pelas pernas até um formigueiro próximo. 

Acompanhado de indiferença e um cigarro de palha, observou as formigas atacarem os machucados. Famintas, penetravam os orifícios descobertos e se embrenhavam no cabelo crespo e volumoso. 

Percebendo que a morte abraçava o alvo de seu desgosto, o fazendeiro dirigiu-se para o casarão no meio dos milhares de hectares, onde predominava a criação de gado. A porta, centralizada com os batentes em azul, combinava com o branco encardido das paredes.

Pegou sua cuia e despejou a água quente na erva moída. Apreciou o chimarrão como um guerreiro romano gozava o sucesso de uma sangrenta batalha, mas, ao contrário de coragem e honra, essa foi uma vitória obtida brandindo a espada da covardia.

Atenta ao fogão, de costas, sua esposa preparava algo para comerem. Aproximou-se de sua orelha para provocá-la, mas o corpo dela tremeu em uma risada infantil e traiçoeira. Virando-a depressa, percebeu estar segurando o negrinho. Ele sorria como se estivesse em paz.

— Bah, tchê, tu não morres? — balbuciou confuso. O corpo fraco e raquítico não exibia qualquer vestígio de ferimento.

Apanhou a faca sobre a pia e golpeou o menino. A cada vez que afundava a lâmina na carne vulnerável, um sentimento de vingança e prazer o invadia, fazendo seus pelos arrepiarem.

Olhou para o rosto do menino e, debaixo de todo aquele sangue, ainda enxergou o mesmo sorriso pacífico que o irritava. 

— Vamos ver o que tu podes fazer sem cabeça — disse, logo cortando o pescoço do negrinho.

A faca rasgou os músculos, cortou artérias e encontrou resistência nos ossos, mas a ira motivava o fazendeiro. Ergueu a cabeça decapitada e começou a rir. 

— Esta fazenda é minha e preto nenhum vai me desafiar! — E encarou o rosto ensanguentado em sua mão.

Deixou a cabeça cair e a chutou para longe ao perceber que o sorriso ainda estava ali. Mesmo sem alguns dentes, com os olhos esfaqueados e parte do nariz arrancado, aqueles lábios ainda irradiavam paz. Aquilo o estava enlouquecendo.

Arfando em revolta, o fazendeiro sentiu-se vingado por fazer o negrinho pagar com a vida a audácia de vestir as roupas de sua esposa, a única pessoa por quem nutria sentimentos. Naquele momento, a voz do seu capitão do mato soou da porta:

— Sinhozinho, vosmecê me disculpa incomoda, mas achei esse negrinho joga… — E um grito de pavor escapou do astuto sujeito, considerado um dos mais brutais da fazenda. Ele olhou para o corpo decapitado no chão, banhado em sangue, e se voltou para seu patrão de pé com a camisa tingida de vermelho.

O estancieiro, percebendo o negrinho nos braços do capitão do mato, se desesperou. Segura o choro para não se deixar ver em um momento de fraqueza, mas a vontade é de esbanjar o medo que cobre todos os seus ossos. 

O menino estava novamente sem qualquer marca de chicote, a cabeça colada ao corpo. Apesar de desfalecido, ainda era possível sentir a energia boa que emanava dele. 

No chão da cozinha, então, o estancieiro encontrou as pernas brancas de varizes marcadas saindo do vestido. Assustado, começou a tatear o chão à procura da cabeça. O ambiente de repente foi iluminado por velas, que pareciam traçar o caminho. Seguindo-as, a quase indistinguível face de sua esposa o aguardava.

Erguendo a cabeça dela e a abraçando, olha para o capitão do mato que, descrente da situação, ainda segurava o garoto. O fazendeiro pegou a faca com a qual matou a esposa e posiciona a lâmina sobre o próprio peito. 

Antes de aplicar o golpe que o livraria da melancolia de matar o único facho de luz que seu sombrio coração enxergava, desceu os olhos até o rosto do negrinho nos braços do imóvel capitão do mato. O garoto abriu lentamente as pálpebras e, encarando o profundo da alma do estancieiro, soltou seu sorriso mais doce.