Arrepios – Natal

Arrepios – Natal

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Para começar bem o ano de 2022, porque não um conto assustador de Natal? Na coluna Arrepios de hoje, descubra até onde vai as perversidades na cabeça de alguém “inocente”.

E um ótimo 2022 para todos nós!


Empinadora sempre foi a mais sentimental. Enquanto aliso seu corpo pela última vez, sempre no sentido do pelo, como ela gosta, sinto que se despede. Não sei se são os olhos brilhantes, o focinho mais gelado que o normal; talvez um suspiro que pode ser apenas mera respiração acelerada, após carregar o trenó por todos esses quilômetros, como deveria de ser.

Rudolph me observa e seu nariz piscando de forma mais fraca. Como se pressentisse o que acontecerá, rouba minha atenção. Tirei as amarras que as prendiam ao trenó, tentei fazer com que voassem livres, mas todas permanecem me olhando, em um silêncio triste e brutal.

As casas brasileiras são das mais complicadas de se entrar. Não fosse a falta de chaminés uma chateação suficiente, ainda tem os cachorros soltos, travas, portões altos e até alguns cacos de vidro e resto de garrafas concentrados por cima dos muros. Sentirei falta disso também, as calças rasgadas sempre fizeram a Dona Noel rir.

Toda a minha vida foi sabendo que esse dia chegaria. Uma maldição tão óbvia que estava escondida em sua simplicidade. Uma hora alguém iria entender que minha condição é assustadora: refém da vontade de crianças. Todas são vistas como ingênuas e doces, e em sua maioria realmente são. Mas, uma hora isso aconteceria, uma hora alguma jovem alma se corromperia e entenderia o seu poder. Bastavam as palavras certas, a estratégia certa. A vontade certa.

Enquanto adentro a casa usando umas das geringonças que os eficazes duendes criaram para abrir portas sem chamar atenção, repasso a cartinha do menino Márcio em minha cabeça.

Tudo bem calculado, palavra por palavra, frase por frase. Um conjunto de sílabas voltadas a um plano extremamente engenhoso, assim como a decoração natalina desta sala.

A árvore na parede oposta à porta, visível de todos os ângulos do ambiente, como deveria de ser. O pisca-pisca nem forte nem fraco demais, numa frequência tranquilizadora, quase sonífera. Botas de papel marchê espalhadas pela parede, conectadas por um fino cordão verde. O pequeno Papai Noel de pelúcia subindo uma escada que não leva a lugar nenhum.

O saco vazio em minhas costas quase não pesa nada. A última das últimas caixas que será entregue no dia 25 de dezembro de 2021, não ocupa espaço o suficiente para mostrar o volume que minhas fotos, desenhos e animações representam com tanta verdade. O saco vazio parece tristonho e cabisbaixo.

Retiro o embrulho azul, coloco a tampa de lado e o apoio no chão. O tamanho é exato, como deveria de ser, os duendes são perfeccionistas ao extremo. Sentirei saudades até de sua mania de limpeza e do incômodo que me causavam quando perguntavam insistentemente se eu precisava de algo mais antes de sair pelo mundo contemplando a minha maldição.

O adesivo plástico azulado que recobre a lâmina me causa certo arrepio ao puxá-lo. Lentamente, o meu reflexo deixa a lâmina avermelhada como se um borrão a pintasse. Retiro a base de madeira e a deito no chão. Coloco uma peça de metal que lembra um U sem as extremidades arredondadas sobre a base e parafuso ambas as partes para ficarem bem firmes. Encaixo a lâmina no espaço , respiro fundo e sorrio em um lapso de alegria ao notar que Misia, a chefe dos duendes e única que realmente sabia o que estava acontecendo, colocou uma bela almofada acolchoada para que meu pescoço ficasse confortável. 

Refaço toda a operação, ganhando poucos segundos a mais, respirando o ar quente e sentindo o cheiro de chuva típico dessa época em São Paulo. Um sereno leve, suficiente para ensopar os pelos das renas. Dançarina era a que mais se incomodava.

Coloco minha cabeça no suporte, puxo a corda para a folha de metal afiadíssima subir e calculo o espaço certo para que o presente caia na caixa aveludada. Milimétrico, como deveria de ser.

Coloco a cartinha que recebi ao lado do presente e solto, enfim, a corda.

 

Querido Papai Noel,

Fui um ótimo menino, fiquei o ano todo sem causar confusão alguma. Duvidaram que eu conseguiria, todos achavam que eu era incontrolável, mas provei que estavam errados. Como a regra é clara, por não ter dado trabalho aos meus pais e ter sido um bom garoto (um ano longo), quero o meu presente e você não tem como negar. Foram vários anos sem ganhar uma meiazinha que fosse, vendo crianças e mais crianças felizes com algo que não me deram a opção de ter.
Agora ficarei como elas, todas seremos iguais. A injustiça será desfeita com um único presente:
Sua cabeça em uma caixa de veludo.
Feliz último Natal,

Marcinho.

Escrito por:

Waldir L. Santos

Considero-me um "Autor não-convencional", com livros publicados em diferentes gêneros literários, prefiro dar asas a minha imaginação a prende-la em uma barreira imaginaria que divide até onde escritor deve ir. Siga-me no Instagram (@Waldirlsantos) e conheça um pouco mais sobre meus livros de terror, suspense, zumbi, dramas e o que mais aparecer nesta cabeça confusa, mas decidida.

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5 COMENTÁRIOS

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Jefferson Tadeu Frias

Lendo retroativamente, mas ainda em tempo. Caraaacaaaaa!
Estou literalmente arrepiado…que conto incrível, perturbador e maravilhoso ao mesmo tempo. E convida a uma profunda reflexão. Amei!

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Marco

Caraaaaca, muito bom!

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Thales Mafra

A riqueza de detalhes causa uma imersão incrível. E mesmo com toda a angústia, é clara a reflexão que causa. Parabéns por ter escrito esse conto

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Bruna Santos

Uma mescla de perturbação e agonia! Acredito que sejam elogios suficientes pra essa imaginação mega criativa! Parabéns por cada detalhe tão bem pensado e principalmente por ser um conto rápido e sem enrolação.

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Leonardo

Ótimo conto, mostrando um lado da lenda do papai Noel que eu nunca havia imaginado na vida. Muito bem bolado, parabéns