Balbúrdia Narrativa — O universo além da mesa: um pouco sobre construção de mundo

Balbúrdia Narrativa — O universo além da mesa: um pouco sobre construção de mundo

construção de mundo

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Eis que no ano de 2020 o caos e a desgraça reinava não apenas no planeta inteiro, mas também dentro da cabeça de cada pessoa que conseguiu se isolar para cumprir com o básico da sobrevivência humana. Comigo não foi diferente. Faculdade trancada, desempregado e contato social próximo a zero por ter voltado a morar na casa dos meus pais enquanto eles se retiravam para um sítio da família a 10km do sinal de celular mais próximo. Como refúgio pro desespero da insanidade mental, resolvi me afogar em RPG, chegando a participar de onze mesas frequentes, jogando quatro e mestrando sete. Um pouco de mais, talvez.

Porém, tendo que planejar tantas sessões em tão pouco tempo, em alguns momentos de devaneio me deparei com uma verdade bem óbvia quando se para pra pensar: toda história, seja uma campanha de RPG, um romance, filme ou qualquer outra narrativa, é apenas uma série de acontecimentos que aquele mundo ficcional permitiu que acontecesse dentro de suas regras e possibilidades. Vamos falar um pouco sobre construção de mundo.

Construção de mundo: Os mecanismos por trás de cada história

Claro que, ao escrever um livro cuja história seja ambientada em um cenário autoral, quem escreve determina quais são as leis que irão reger aquele universo, para que então a história possa fazer sentido ali dentro. As varinhas mágicas do mundo de Harry Potter, por exemplo, são um elemento fundamental na construção de mundo, pois uma das “leis” deste universo é os bruxos se utilizarem destes artefatos para facilitar a canalização de feitiços. Porém, se J.K. Rowling, na época em que ainda agia como uma pessoa sã, enquanto ainda desenhava o primeiro livro da saga, tivesse determinado que os bruxos não se equipavam de varinhas, mas sim de cajados mágicos, isto não seria apenas uma mudança estética na história de Harry e companhia, mas sim uma mudança impactante em todo o mundo da magia.

Transformar um objeto simples e pequeno, que poderia ser facilmente guardado em um bolso discreto do casaco, em um pedaço de madeira maior do que um aluno calouro definitivamente acarretaria em cenas e situações completamente diferentes das que já lemos e assistimos, desde o momento em que Harry é escolhido pelo cajado forjado com pena de fênix em uma loja do Beco Diagonal, até o momento em que o cajado dos cajados é retirado das mãos do velho e frio professor Dumbledore. O que quero dizer com tudo isso é que todas as histórias necessitam de elementos que façam parte daquele mundo para que possam funcionar.

RPG também é uma forma de contar história

Agora, transportando esta ideia para dentro de uma campanha de RPG, lugar onde a narrativa é desenvolvida coletivamente com os seus protagonistas, quando o narrador conhece bem o suficiente os elementos do cenário, não necessariamente do mundo todo, mas apenas da região em que estão os personagens, o desenrolar da trama – e do improviso – se torna muito mais natural. Claro que o mestre não precisa saber quem foi o bisavô materno do padeiro da vila, mas o fato de existir um padeiro na vila já é um elemento que pode ser desenvolvido dentro do jogo.

Os elementos que gosto de definir na construção de mundo são a geografia, cultura, economia, costumes, religião e política da região em que os personagens irão se aventurar. E isso não é tão complicado assim.

Vou pular direto para um exemplo tirado de uma mesa que narrei no sistema Tormenta 20, ambientada em Arton.

O grupo havia partido da nação de Deheon e estava viajando a cavalo rumo ao reino de Fortuna para se encontrar com um aristocrata que havia lhes enviado uma proposta de trabalho, viagem esta que levaria pouco mais de três semanas. Eu sabia que a sessão — ou sessões — em que os jogadores passariam na estrada não teria um impacto considerável na campanha como um todo, sem grandes conflitos com vilões ou viradas de trama — a não ser que uma sequência inglória de erros críticos tirasse a vida de alguém —, mas não estava muito inclinado a resumir uma jornada de quase um mês a eventos aleatórios, rolagens banais ou simplesmente com “passou um mês e vocês chegaram”.

Conhecendo o mundo da sua mesa de RPG

Ao término da sessão anterior, o grupo havia decidido viajar pelo interior do continente, região mais rochosa e fria devido à proximidade com as nevadas Montanhas Uivantes, de terreno acidentado e árduo (geografia). Por ser uma terra desolada e com pouca diversidade de fauna e flora, decidi que o ofício mais comum dos moradores locais seria a extração de minérios em pedreiras e em minas de ferro (cultura), tornando a exportação destes materiais o principal comércio dali (economia). Por viverem em uma área tão desolada, afastada das principais rotas de viagem, normalmente os moradores não enxergavam estrangeiros com bons olhos (costumes).

As crenças na região eram variadas, mas pouquíssimas das civilizações erguiam altares. A maior exceção era uma cidadezinha habitada principalmente por humanos e anões, chamada Rocha de Grís, que possuía uma humilde igreja de Allihanna (religião). Por fim, a alta-sacerdotisa de Rocha de Grís fazia questão de lembrar a todos que a pedra e o metal também eram frutos da terra, e que a prospecção excessiva destes frutos poderia trazer consequências severas, ao mesmo tempo em que o líder da guilda dos comerciantes da cidade estava tensionando seu relacionamento com a igreja, pois as palavras da clériga deixavam os mineradores receosos e atrapalhava seus negócios (política).

A primeira parte da construção de mundo está pronta. Isto era tudo o que eu havia preparado e, com isto estabelecido, tornou-se prático desenvolver o restante da sessão a partir da curiosidade e ações dos jogadores.

Que entrem os jogadores!

Depois de passarem por testes de Sobrevivência e Cavalgar para se guiarem através de colinas pedregosas e fugirem de uma avalanche ao terem falhado nestes testes, chegaram a Rocha de Grís em um fim de tarde nebuloso. Percebendo olhares desconfiados em todo canto, a feiticeira sugeriu reabastecer os mantimentos e partir em seguida para que não causassem problemas, mas eu não queria que isso acontecesse, pois chegariam rápido demais ao objetivo final da viagem. Então, fiz um jovem pupilo de Allihanna e um minerador discutirem ferrenhamente diante das vistas do grupo, discussão essa que terminou com o nariz quebrado do minerador e a fuga do rapaz. Havia um druida de Allihanna entre os membros do grupo, e eu sabia que este conflito despertaria seu interesse. Prontamente os demais integrantes foram convencidos de que precisavam entender melhor o que estava acontecendo.

Encontraram-se tanto com a alta-sacerdotisa quanto com o líder da guilda, conversaram com alguns trabalhadores das minas e comerciantes. Descobriram que o jovem que havia quebrado o nariz do minerador era um recém-órfão temperamental e que, ao ser interrogado, inventei que ele havia agido daquela maneira pois tinha sido acusando de ter sabotado um carregamento de minério de ferro, trabalho que ele afirmava ter sido feito por demônios da ferrugem que amaldiçoavam o ferro em nome de Allihanna. Decidiram examinar o carregamento e encontraram o metal completamente apodrecido.

A construção de mundo no RPG é coletiva

O ladino sugeriu que a culpa poderia ser da sacerdotisa. Eu não havia pensado nisso, mas achei uma ótima ideia. A partir daquele momento, ela se tornou a culpada. Agora, quem decidiu inspecionar o carregamento foi a feiticeira, que rapidamente detectou rastros de magia na ferrugem. Interrogaram a clériga, mas não conseguiram prova alguma. Porém, durante a madrugada, o ladino desconfiado invadiu os seus aposentos e, com um lindo crítico em Investigação, encontrou as ferramentas para conjurar um milagre de transmutação que permitia alterar as características de qualquer metal, inclusive oxidá-lo até tornar-se pó.

Com as provas em mãos, viram-se diante de um dilema: acreditavam que a alta-sacerdotisa não era maligna, apenas via-se em posição de proteger aquela terra da influência pesada da civilização, e não seria facilmente coagida a abandonar este plano, ao mesmo tempo que sabiam que expô-la aos cidadãos e ao líder da guilda significaria seu exílio, prisão ou morte.

Depois de uns quinze minutos discutindo as possibilidades, decidiram entregar as provas para a própria sacerdotisa, alertá-la sobre os riscos que ela e seus pupilos corriam por seus atos imprudentes e deram as costas para a cidade. O grupo acabou percebendo que a trama de Rocha de Grís não era uma questão de bem e mau, certo e errado, e seria impossível resolver esta situação de maneira simples, ainda mais levando em consideração que haviam um compromisso importante dentro de poucos dias em um reino vizinho e que ninguém que habitava aquelas ruas de pedra cinzenta confiava minimamente em forasteiros.

O mundo ganha vida própria

A sessão terminou com os personagens se sentindo impotentes por não terem conseguido ajudar pessoas necessitadas, e com os jogadores reflexivos por compreenderem que nem todo problema se soluciona com aço e magia.

No início daquela sessão, tudo o que eu sabia era a geografia, cultura, economia, costumes, religião e política da região de Rocha de Grís. No final, tínhamos uma cidade muito interessante que o grupo ainda cogita retornar alguns níveis mais tarde para tentar, mais uma vez, prestar seus serviços à comunidade.

É muitíssimo importante ressaltar uma coisa que eu acredito ser essencial em qualquer mesa de RPG, mas obrigatória para que Rocha de Grís pudesse ter se desenvolvido desta forma em uma única sessão: a imersão dos jogadores dentro da narrativa e a vontade de, através da perspectiva dos seus personagens, explorar aquele universo. O RPG é, como disse anteriormente, uma narrativa formada coletivamente, e não apenas entregue pronta pelas mãos do mestre. Não é diferente com a construção de mundo, e o desenvolvimento de Rocha de Grís só aconteceu por que os jogadores tiveram curiosidade.

Para encerrar, é sempre bom considerar a possibilidade do grupo ter visto a briga entre o jovem e o minerador, respirado fundo e falado: “Dane-se, vamos ignorar tudo isso e continuar cavalgando em linha reta até o nosso objetivo”, e então metade do meu planejamento teria sido jogado para a patente sem descarga. Bem, caso isso tivesse acontecido, gostaria de lembrar que o Capítulo 7 do manual do Tormenta20 apresenta uma gama bem interessante de criaturas que poderiam dar cabo do grupo inteiro. E não seria um grande infortúnio se por acaso cada monstro aparecesse com dois ou três níveis a mais…

7 COMENTÁRIOS

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Zarat

Cara, depois dessa vou começar a escrever meu cenário. Me animei!

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    G. S. Krupp

    Valeu, rapaz! Fico feliz em ter te animado com meu texto! Quanto mais cenários pra nós, RPGistas, melhor!

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Zarat

Nossa, depois dessa eu até me animei de escrever meu próprio cenário!

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Mael

Esse Krupp e sensacional, poderia publicar um texto dele por semana Jambô, e de alegrar os olhos, e perguntarmos sejam mestre ou jogadores, em pensar nos detalhes no pormenor que seja, pra que haja a imersao total do que criamos, obrigado Krupp, que venha mais textos legais como esse

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    G. S. Krupp

    Faaaala, Mael! Muito obrigado pelas palavras, cara!
    Escrevi esse texto pensando mais no papel do mestre, mas já estou planejando para focar o próximo nos jogadores.
    Abraço!

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Paulo

Muito bom o texto, bem mais fácil de fluir a mesa tendo em mente os elementos do cenário 😁

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    G. S. Krupp

    Valeu, rapaz! Feliz em saber que o texto ajudou
    Abraço!