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Arrepios 03 — Garras

horror pós-apocaliptico

O que acontece depois do fim do mundo? Eventos pós-apocalípticos são excelentes para criarmos enredos nos quais nem sempre o ambiente caótico e a dificuldade para sobrevivência são os fatores realmente importantes na trama.

Apesar de parecer um tópico distante, a destruição de tudo que nós conhecemos não está presa aos livros e filmes de Hollywood. Vivemos nossas vidas muitas vezes ignorando que um ataque nuclear, a fúria da natureza em resposta ao aquecimento global ou um meteoro em rota de colisão são possibilidades reais e, em alguns casos, já em andamento. Dependendo da sua crença, um evento apocalíptico não é só possível como já aconteceu. Afinal, uma inundação mundial que reduziu a humanidade a um barco com alguns animais nos torna sobreviventes de um pós-apocalipse bíblico. Ou até um em que os planos divinos não eram bem o esperado, como Neon Genesis Evangelion.

Uma doença que transforma 99% da população em vampiros (Eu sou a Lenda), uma bomba nuclear, monstros que se transformam em nossos piores medos (Caixa de Pássaros) ou a fúria da natureza, o final dos tempos transborda pela literatura e inunda nossas mentes. De maneira geniosa, nosso subconsciente trabalha contra a razão e se dilui em histórias de uma Terra devastada resumida a um punhado de sobreviventes lutando para não morrer. A coluna Arrepios deste mês tem um conto que mostra o que acontece quando a Terra perde a batalha contra o impossível, e tudo que resta é a selvagem vontade de sobreviver a qualquer custo. O que acontece depois do fim?


Garras

Detestava os sons de suas garras caminhando por entre o asfalto queimado ou as telhas de amianto tanto quanto detesto este silêncio. Meus ouvidos, outrora  alarmes biológicos reprogramados para autodefesa, agora são simples pregadores de peças. O arrepio que costurava minha coluna era o convite para a morte, agora é o medo da solidão. Meu eu do passado riria ao saber dos meus pensamentos, mas antes a certeza do doloroso fim entre seus dentes afiados e indiferentes a essa mórbida rotina desesperançosa, na qual o único intuito de levantar-se pela manhã é ter o que comer e conseguir espantar o frio.

Acordar, notar-se ainda viva, sentir o cheiro de corpos apodrecidos mesmo a quilômetros de distância, receber o pedido da fome e só depois abrir os olhos. Mexer na cortina, me entristecer com o  sol por trás da poeira que insiste em não sumir e torcer para não ver novamente o clarão azul que cruzou os céus e ficará gravado em minha retina para sempre. 

Não tivemos muito tempo para pensar no impacto. Os milhões que morreram sem ao menos entender o acontecido são sortudos, e os invejo. Não viram a sociedade sucumbir em poucos dias, o caos tomar o controle dos governos e o ser humano ser resumido a selvageria e egoísmo. Não precisaram  lutar para acumular mantimentos, tampouco descobrir que toda a destruição causada pela força imensurável do impacto  não foi nada além de um pouso bem sucedido, carregado do fim.

Nossos cientistas morreram em vão, não encontraram pontos fracos, não descobriram maneiras de derrotá-los, não entenderam seu propósito e tampouco conseguiram mostrar se eram máquinas, seres ou demônios. Não sei dizer quão grande foram seus esforços, visto que muitos defendiam que a extinção seria causada pelo impacto e os cruéis alienígenas  que vieram a seguir pareciam apenas querer antecipar o processo. Ou garantir que ele fora o suficiente.

A maioria das pessoas se rendeu ao temor indigesto causado pelo apocalipse anunciado por várias religiões. Alguns líderes surgiram e evocaram a palavra de Deus contra os “demônios do inferno” que ironicamente vieram do céu. Esses líderes sumiram com a mesma velocidade com que foram criados, lutaram contra, mas acabaram destroçados como cubos de gelo em um liquidificador.

Já não sou mais a mesma, sinto que não sou a mesma, não só pelos frangalhos borrados do meu psicológico, mas também com mudanças tristes que enxergo como evolução, Temo que meu corpo tenha enfim entendido que a reprodução não mais seja parte de seu caminho, desligando em definitivo a nascente de cor forte que mostrava que a humanidade poderia lutar contra a extinção. Chorei um dia por isso, um longínquo momento que tive segundos de paz para preocupar-me comigo mesma. 

Agora foco meus pensamentos em não desistir. Procuro máscaras para me proteger da poeira, me enrolo em roupas que eu mesma faço para tentar lidar com o frio opressor. Onde antes havia calor e diversão, hoje é coberto por restos de tudo. O colorido das pessoas hoje é substituído pelo cinza infinito, cobrindo a terra como se o diabo confeitasse um bolo podre A preocupação constante com um teto ao observar as nuvens negras de chuva ácida controla meu êxodo sem destino. Antes os gritos, uivos ou que quer que fosse os sons horripilantes que pareciam contorcer meus timpanos me lembravam constantemente que eu estava viva. Agora, o torpor da falta de sentido queima meu ego, já enfraquecido por saber que só estou aqui por ser boa em me esconder. Nosso grupo teimou em enfrentar algo acima da nossa capacidade humana, lutando contra a morte em sua pura essência. Seres que não pareciam querer se alimentar, satisfazendo sua vontade apenas com o som de ossos quebrados e o silêncio abafado de gritos. Não mastigavam as vítimas, não sentiam remorso. Atacavam com a vontade de extinguir os humanos da Terra, selvageria pura e bem organizada. 

Encontrei um oásis de puro ânimo, uma máquina de refrigerantes lotada. Um pouco de normalidade, cortando o silêncio deste prédio em ruínas por um som familiar que me traz memórias que normalmente só vem em sonhos. O vermelho da lata contrastando com o cinza úmido é estranhamente alegre, quase me dá vontade de sorrir. Sento em cima de entulhos indistinguíveis, aprecio o gás voltando pela minha garganta e o eco engraçado do arroto reverberando por metros e mais metros de concreto remoído, enquanto observo uma nova luz azul, muito maior que a primeira, cortar a atmosfera. 

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Personagens de Horror — Arquétipos de personagens para sua mesa de RPG

arquétipos de personagens

Peço desculpas a quem me acompanha, mas mês passado foi mais corrido que o esperado e ficamos sem texto. Seguindo nossa trilha de sangue e ossos descarnados rumo a aventuras arrepiantes, esse mês trago algo um pouco diferente dos anteriores. Vamos abordar uma parte fundamental para uma boa experiência de jogo: os jogadores criarem bons personagens. Passamos por diversas dicas para os mestres usarem os subgêneros do terror, mas ainda não passamos pelos personagens. Hoje vou intrododuzir os principais arquétipos de personagens de RPG de horror.

Tipos de personagens mais usados

Bons personagens podem tornar qualquer história inesquecível. Toda a responsabilidade de criar uma história marcante não deve ficar apenas a cargo do mestre de jogo. Uma boa sessão de RPG é uma criação e esforço coletivo. Cabe aos jogadores fazerem o seu melhor para criar e interpretar personagens que além de divertidos, se encaixem na proposta do jogo discutida na sessão zero.

É muito frustrante e complicado de conciliar personagens que destoem muito da proposta da mesa. Pode ser bem difícil entrar no clima de horror certo em um jogo de terror se um dos personagens for um Pistoleiro que atira confete com galinhas de borracha. Então, não é nenhum esforço criar algo dentro da temática proposta. Se você não gosta da temática, talvez seja uma boa ideia dispensar esse jogo em particular, deixe para a próxima.

Ao jogar RPG, a menos que a ideia do seu grupo seja MUITO incomum, escolhemos interpretar personagens heroicos. Pessoas que desejam melhorar o mundo de alguma forma: para si, para seus amigos e familiares,ou mesmo para o mundo inteiro. O primeiro passo é identificar qual o nível de idealismo heróico você deseja jogar.

Partindo da ideia que o jogo terá uma temática de horror, é possível se inspirar fortemente na literatura gótica, que notadamente desenvolve três tipos de personagens: Herói Inocente, Herói Trágico e Herói Decadente.

Herói Inocente

O herói desse tipo é alguém com qualidades mais próximas do ideal. O homem santo que busca a salvação para todos, a nobre que espalha a bondade, são personagens mais próximos do ideal de heroísmo clássico.

Muitas vezes esse tipo de personagem é associado com paladinos e clérigos de deuses bondosos e justos. Como estamos falando de personagens para jogos de horror, é uma boa ideia escolher algum defeito de personalidade que torne o personagem propenso a uma jornada de declínio. Ou alguma mácula que possa crescer aos poucos no âmago do personagem. Discuta com quem vai mestrar para criar algo que seja bom para todas as partes.

Como exemplos tempos Sypha Belnades de Castlevania e Gregor Vahn, personagem da Trilogia Clássica de Tormenta. Não vou dar spoilers, mas é um paladino de Thyatis que tem uma bênção-maldição que aos poucos o conduz a um caminho tortuoso. Como o Zemo disse em Guerra Civil,  ninguém é tão perfeito assim. 

Herói Trágico

Esse herói, como o nome já diz, é aquele marcado por uma experiência ruim no passado que fez com que mudasse para sempre. 

Como estamos falando de jogos de horror, pode ser interessante pensar em um evento sobrenatural: o irmão do personagem desapareceu na floresta assombrada, algum familiar foi atacado por um lobisomem, ele se tornou marcado pela Tormenta depois de um encontro bizarro com um ser estranho.

É necessário tomar cuidado com esse tipo de personagem para que a tragédia não o paralise. O que houve em seu passado (antes do jogo), definitivamente marcou sua trajetória de vida, mas não pode ser central no momento ou não haverá jogo. É muito chato se toda a narrativa girar em torno de apenas um personagem, então, tome cuidado para não tentar monopolizar a atenção da mesa inteira.

Bons exemplos desse tipo de personagem são Louis de Entrevista com o Vampiro, com seu amor pela humanidade, Naomi Nagata de The Expanse, que mesmo tendo algo de terrível no passado tenta compensar agindo corretamente e Alucard de Castlevânia, que precisa enfrentar o próprio pai pelo bem da humanidade.

Herói Decadente

Esse herói é alguém que já foi inocente ou trágico, mas caiu em desgraça. É o anti-herói, alguém que trilha o caminho limite entre as sombras e a luz. Alguém obscuro cujo arquétipo faz muito sucesso em animes. 

Ele pode ter um pacto com forças malignas que tenta quebrar, ser alguém entregue aos vícios que graças a algum evento decidiu agir em prol do bem maior. Não importa qual seja a marca da decadência, mas é importante que seja superável. O personagem precisa sobrepujar as amarras e conseguir agir heroicamente e em conjunto, ou o jogo ficará prejudicado. 

Geralmente, um grande  dilema para quem opta por esse tipo de personagem é fazê-lo pender demais para o lado das sombras. Alguém que constantemente toma ações prejudiciais para o grupo em benefício próprio. Lembre-se de que o personagem continua sendo um herói lá no fundo, ele fará a coisa certa, ou não há sentido em integrar um grupo heróico, e sim de vilões.

Exemplos de personagens decadentes são Belmont do anime Castlevania e Allan Quarterman do quadrinho A Liga Extraordinária.

Sempre é bom lembrar que RPG é um jogo coletivo, precisa ser divertido para todos que o jogam. Se seu personagem atrapalha a diversão dos demais, paralisa o jogo, é bom revê-lo.

Na próxima coluna voltaremos com a análise de subgêneros de terror dentro de jogos.

Bons sustos!