A função de mestrar RPG é vista como uma das mais centrais no hobby. Em particular, a ideia do “bom mestre” de RPG tem um aspecto quase lendário – algo que todo grupo de amigos querendo jogar RPG busca e um título muito almejado.
Porém, o RPG não depende de “bons mestres”. Imagina o quão limitado seria um jogo que você só pudesse jogar com alguém que é muito bom nele? Um “bom mestre” em um grupo com má vontade nada pode fazer. Aliás, é exatamente por isso que o RPG funciona tão bem: ele não depende de uma pessoa para que seja divertido e emocionante, e sim da colaboração de todos no grupo.
Já falamos aqui sobre como é fácil começar a mestrar RPG, mas ainda assim alguns mestres sentem que precisam desenvolver habilidades para serem “bem sucedidos”. Não há nada de errado em querer melhorar em uma atividade que gostamos de fazer. Mas também isso não significa que lhe falta algo ou que você seja “ruim”.
Esse sentimento normalmente é produto de algumas crenças que a comunidade tem sobre o papel do mestre e que eu vou tentar desconstruir nesse artigo.
O mestre é responsável pela diversão do grupo
A atribuição mais difundida sobre o papel do mestre de RPG é, também, uma das mais absurdas: “O mestre é responsável pela diversão dos jogadores”. Isso significa que, se um grupo de 4 a 6 pessoas joga uma sessão de RPG de cerca de 4 horas que não é divertida, então a culpa é somente de uma pessoa — do mestre. Isso também dá a ideia de um papel mais “servil”: o mestre joga RPG para entreter os jogadores. E essa ideia muitas vezes os leva a priorizar a diversão dos outros ao invés da própria.
Não parece injusto?
Primeiramente, diversão é algo difícil de definir. Como saber se uma sessão de jogo foi divertida? Normalmente temos uma resposta circular: “a sessão foi divertida se todos se divertiram”, mas o que isso quer dizer? Para muitos grupos, a sessão foi divertida se houveram momentos em que todos deram risadas ou comemoraram, mas e para jogos com um tom diferente, como drama ou horror? Na prática, cada pessoa tem uma definição diferente do que é divertido — seja derrotar inimigos, investigar mistérios intrincados ou criar relacionamentos com outros personagens.
Além da dificuldade da definição, que varia de pessoa para pessoa, também existem inúmeros fatores fora do controle do mestre que influenciam a diversão. Alguns jogadores podem estar cansados e sem energia para jogar, o grupo pode não estar gostando do sistema do jogo, problemas pessoais podem impedir que um jogador preste atenção, o próprio mestre pode estar com um bloqueio criativo, etc. Às vezes o jogo pode não ser divertido e isso não é culpa de ninguém.
Por fim, devemos lembrar que o mestre também tem coisas que gostaria de ver no jogo. Podem ser personagens que quer interpretar, desafios que deseja ver em cena, etc. Como qualquer outro jogador, ele também joga para se divertir. Portanto, a responsabilidade pela diversão é de todos no grupo: mestre e jogadores devem buscar criar a sua própria diversão, contribuindo para a narrativa, além de facilitar a diversão dos outros integrantes do grupo.
Mestrar RPG é ser o “deus” do mundo do jogo
É muito comum ouvirmos que o “mestre manda”, como se a palavra dele fosse final sobre qualquer assunto e ele não estivesse sujeito às regras. Sob esse ponto de vista, jogadores não poderiam questionar a aplicação de regras e teriam de aceitar qualquer coisa que acontecesse no jogo.
Essa concepção faz sentido, se levarmos em conta que o mestre é o encarregado da aplicação das regras e de narrar como o mundo reage quando um personagem jogador (PJ) faz uma ação, mas será que o mestre tem realmente essa liberdade e poder todo?
Por mais livre que seja o RPG comparado a outros jogos, todos os jogadores, inclusive o mestre, são limitados por diversos elementos, como o gênero do jogo, as regras, o contrato do grupo estabelecido na sessão zero e o que é esperado de cada papel. Em particular, cada jogo define quais são as atribuições do mestre (se houver um) e como devem ser desempenhadas.
No geral, o objetivo do mestre é o de ajudar o grupo a criar uma história interessante com a contribuição de todos na mesa. Não é função do mestre frustrar os jogadores ou impedir os planos dos seus personagens, mas tornar a sua execução mais emocionante. A “autoridade” sobre as regras também varia de jogo para jogo: em Tormenta 20, por exemplo, o grupo inteiro deve concordar com quaisquer mudanças nas regras.
Finalmente, é importante prestarmos atenção em que contexto esse tipo de afirmação aparece. Assumir a postura de “eu sou o mestre, eu mando” para resolver desavenças no grupo nunca é uma saída saudável. Seus jogadores vão apenas se frustrar, o jogo vai deixar de ser divertido ou eles vão parar de jogar com você. Conversar com o grupo e chegar a um consenso é sempre o melhor caminho.
Mestrar RPG é contar uma história para os jogadores
Outra ideia bastante difundida é a de que o mestre conta a história do jogo para os jogadores. Certamente, para quem olha um jogo de RPG de fora, esse parece ser o caso. É o mestre quem está falando na maior parte do tempo, enquanto os jogadores escutam atentamente antes de declarar suas ações, mas tem muito mais acontecendo aí.
Mesmo que o mestre controle todos os outros personagens, os protagonistas do RPG são os PJs. São eles que têm o maior poder de decisão sobre a direção que a história vai tomar e o mestre não pode e nem deve tentar controlar suas ações. Por esse motivo, tentar contar uma história pré-estabelecida para os jogadores no RPG é uma atividade extremamente contraproducente.
Isso não significa que o mestre não pode preparar a aventura. A preparação – tópico que varia muito de mestre para mestre – ajuda a reagir melhor às ações dos PJs e a ter coisas interessantes para narrar, mas ela é uma ferramenta auxiliar, não algo a ser seguido à risca.
É importante ter em mente que a história é um produto da interação do mestre e dos jogadores com as regras do jogo – e não algo que alguém pensou antes como deveria ser. Por isso ignorar regras em prol da “história” não faz sentido: a história é o que está sendo criada ali, naquele momento, abrace ela.
Mestre, nada mais que um jogador
Certamente existem outras ideias nocivas sobre o papel do mestre (que talvez até justifiquem uma segunda parte desse artigo) que fazem a tarefa parecer mais difícil do que ela é, mas essas três são bem populares e costumam ser fontes de insegurança para muitos novatos.
Dito isso, assim como os jogadores, o mestre de RPG tem responsabilidades. Por exemplo, é ele quem equilibra quanto “tempo de tela” cada PJ tem, permitindo que todos tenham uma chance de contribuir para a história. Também é quem dá a base para o tom do jogo, garantindo que a história se mantenha consistente.
Enxergar o papel do mestre apenas como um jogador diferente nos permite encarar a aventura com a leveza necessária para apenas sentar com os amigos e se divertir. Por isso, não perca tempo procurando um “bom mestre” para o seu grupo de amigos: leiam o livro do jogo, decidam quem será o mestre e comecem a viver histórias fantásticas juntos.
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Mestrar RPG é uma tarefa muito mais fácil do que parece, mas algumas crenças sobre isso pode nos deixar bastante inseguros para assumir esse papel. Que dica você daria para alguém que está com dúvidas sobre mestrar?