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Arrepios 04 — Colheita

Arrepios

Na Arrepios de novembro, temos o Folk Horror, um subgênero do terror fantástico que tive o enorme (des)prazer de conhecer quando criança, com um dos filmes mais assustadores que minha mente adulta consegue se lembrar (e que não ouso reassistir, não quero estragar essa terrível e alegre lembrança). Em Colheita Maldita, baseada no livro de Stephen King, somos levados para um vilarejo onde jovens, após assassinarem todos os adultos, usam o sangue humano para um bizarro ritual de colheita. Some ao enredo a dois desavisados vindos de outro estado e temos a receita do Folk Horror clássico. Talvez a obra mais famosa do gênero seja O Sacrifício, filme britânico de 1973 que ganhou um remake mais lembrado como comédia involuntária estrelando Nicolas Cage. Na safra mais recente de grandes obras de horror, A Bruxa (2015, dirigido por Robert Eggers) e Midsommar (2017, dirigido por Ari Aster) também abraçam o gênero. 

Essas histórias são geralmente passadas em zonas rurais isoladas, onde as regras sociais nas quais estamos acostumados são distorcidas por regras próprias, voltadas a rituais cruéis em devoção a deuses pagãos. Com esse resumo simples e essa ideia na cabeça, escrevi o conto “Colheita”, que fecha a coluna Arrepios de hoje.


Colheita

O milho não nasceu como deveria, não cresceu como deveria, não pintou nossos campos como deveria. As nossas bocas não foram alimentadas como deveriam, nossos senhores não ficaram felizes como deveriam.

A culpa, obviamente, é nossa. Pecados carnais. Talvez gula ou alguma outra ação humana indevida. Os deuses são cruéis, o deus da colheita é o mais cruel deles. Não que essa crueldade seja pejorativa, claro que não. O que esperávamos que nosso senhor, que nos alimenta, fizesse quando suas ovelhas, seres insignificantes que apenas estão vivos graças a sua benevolência, quebrassem as regras?

Regras simples: nossas vestimentas seguem as cores das camélias na primavera, dos fedegosos no verão, ipês no outono e do luto no inverno, em respeito às plantações que se perdem pelo angustiante frio que pulveriza nossos campos. 

O inverno é a dor na carne do deus, ouso blasfemar, sua fraqueza, talvez a própria maldição. Por isso, nós também precisamos sofrer, sentir na pele essa desolação. Nada mais justo, nada mais honesto de nossa parte. Se a terra é castigada, por que nós não? Se até o Sol sofre as consequências dos invariáveis desejos dos quais não tenho coragem de questionar, por que restos de carne e osso se dizem contrários?

O pastor nos falou, agora há pouco, o sermão do crescimento e da alimentação. Nosso pastor sim sabe como honrar quem nos domina, tatuou todo o sermão e o mandamento da colheita em seu corpo, pois sabe que a carne não é nada sem o alimento, e o alimento não é nada sem o grande deus. Arrancou a camisa e rodou no próprio eixo, me obrigando a ler palavra por palavra da antiga língua que nos é ensinada desde pequenos, mesmo sem termos acesso aos livros sagrados.

Agradeci em voz alta essa benção, o privilégio de pronunciar santos refrões. Despida, tive o prazer incalculável de servir como papiro para o sermão do perdão, das desculpas, da aceitação. A melhor maneira de conversar com os deuses, disse o pastor, é mostrar que estamos dispostos a ceder nossos corpos em prol de um bem maior, um bem comum. Poucas pessoas são agraciadas com tamanha honra. Fico feliz.

Agora, observo todos dançando em torno, envolvidos com o aroma da bebida delirante e felizes pela certeza de que seremos atendidos. NUNCA os deuses recusaram nossa súplica, NUNCA nos deixaram sozinhos depois de uma crise alimentar tão devastadora. Não será hoje esse dia.

O calor cresce em minhas pernas e minha pele se umedece aos poucos. O canto ecoa pela noite, a bebida que tomei começa a fazer efeito e torna as roupas brancas e vermelhas em uma mistura rosa disforme, conforme meus olhos se enganam por trás do balançar das chamas, animadas com o ritual. O som da lenha estalando alimenta meu ouvido, enquanto agradeço em voz alta a chance de limpar a aldeia de tanto mal. O fogo que me consome consumirá também a fome do meu povo.

Assim espero. 

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Arrepios 01 — Passos

arrepios

Em Arrepios, a nova coluna do blog da Jambô, vou trazer algumas experimentações com histórias de terror a partir de obras que me influenciaram. A ideia é fazer um exercício rápido em primeira pessoa sobre várias estéticas especializadas na arte de assustar. Neste mês, minha inspiração veio de leituras de Edgar Allan Poe, um dos mestres do horror gótico da Era Vitoriana, que causavam medo não por suas cenas assustadoras ou sanguinolência, mas pela criação de uma ambientação sombria, pelo encontro com o sobrenatural, com a morte e pelo desconforto que tudo isso causa nas pessoas. Clássicos do horror como Frankstein, Dracula e O Médico e o Monstro vem da mesma escola de horror, e autores mais atuais como Anne Rice, Shirley Jackson e Stephen King também contribuiram para o gênero no século XX. Os amantes de séries podem ver bons exemplos do gênero em A Maldição da Mansão Hill, inspirada em A Maldição da Casa da Colina, de Shirley Jackson, e, principalmente, A Maldição da Mansão Bly, inspirada no romance A Outra Volta do Parafuso, de Henry James.

Bons Arrepios!


Passos

Esses malditos passos que rondam minha cabeça como se fagulhas de uma fogueira se espalhassem por dentro do meu cérebro, impedindo-me de pensar em qualquer outra coisa que não seja esse ruído crespo, intenso e intermitente. A angústia da escuridão densa e absoluta quase me tira a sensação sufocante que ouso esquecer nos raros momentos de quietude. Aceitei, como não haveria de aceitar? É um destino tão cruel como inevitável, talvez injusto por todo o floreio que a vida faz, enquanto gastamos nosso tempo desviando da verdade imutável. O destino de todos é um abraço gelado e maciço, indiferente e final.

Os passos se cansam, ou minha mente me dá um segundo de paz, enquanto os instantes de sossego me lembram da claustrofóbica sensação tão impregnada como a fome, tão presente como o medo, tão azeda como a dor. A calmaria temporária faz com que meus pensamentos viagem a outras épocas, mesmo distorcendo rostos, lugares e sensações. Passeio por uma estrada escura, apenas uma fração do que eu já fui.

Quando estou prestes a montar o quebra-cabeça, tentando encaixar as confusas peças de minha nova existência, eles surgem novamente, como uma criança irritada atirando ao ar, com longos  e estridentes berros, cada pecinha bem encaixada. Alguns calmos, outros acelerados. Todos os passos, e afirmo novamente, todos, vagueiam esperançosos, como se o destino final pudesse se modificar milagrosamente, enquanto a indecisão tomasse seu lugar no estranho tabuleiro sem texturas e tampouco um rei no qual a balbúrdia e a calmaria disputam palmo a palmo minha sanidade. Tolos dramáticos, lotados de fé e ao mesmo tempo céticos medrosos com o futuro que acreditam conhecer. Tolos, tolos… tolos.

Alguns momentos divertidos — assim os imagino, já que não me lembro mais qual a tonalidade certa dos meus sentimentos, quase todos cinzas como se o nada enfim tivesse cor — brotam como vultos em meio a solidão, frio e os passos que quase nunca se esvaem. Uso toda a força que mal tenho para procurar em meio ao caos de memórias borradas algo que faça me sentir brevemente feliz, esculpindo um ralo sorriso no duro semblante que imagino carregar.

Não sei se preciso de ar, tampouco como andam meus pulmões. Fico em dúvida se o movimento exagerado do meu tórax é causado pelo oxigênio quase inexistente ou espasmos involuntários oriundos da ansiedade. Tenho corpo, sei que tenho, mas não sinto que preciso, ou que ele reaja conforme minhas necessidades, que também não sei quais são. Um cérebro envolto em agonia, ou vontades soltas em um universo sombrio e sem sentido. Também luto para entender.

O tempo tornou-se indiferente. Não sei me dizer o quanto um segundo é demorado e como os dias passam voando. A sensação que permeia o campo infértil de minha mente é de uma ampulheta tentando escorrer um único grão maior que o milimétrico furo entre suas extremidades. Nada para pensar, pensando o tempo todo em coisa alguma, e de repente os passos batem como facas sem fio tentando cortar um bife grosso. Reverbera pelas paredes de minha moradia, multiplicando-se com a velocidade de um raio determinado.

Uma época do tempo esses passos me atormentam sadicamente. Durante esse período aparecem as centenas, talvez milhares, e batucam em um ritmo acelerado e desuniforme, galopando com cascos repletos de pequenos e afiados espinhos invisíveis. Neste ínterim, luto inutilmente contra a certeza que a frase engasgada em uma voz familiar, partindo não sei de onde e aos poucos digladiando contra todo esse mineral que me cerca, alcançando meus ouvidos e grosseiramente espancando meus tímpanos com brutalidade e verdade, me lembrado do que agora sou.

O sussurro familiar rasga meu peito, finalmente manchando minhas vistas e me mostrando que a dor vem com um tom vermelho escuro, criando a ilusão da mudança do meu infeliz paradigma. Consigo enfim prestar atenção, quando o cheiro de crisântemo, lágrimas, velas e terra brotam por onde um dia estiveram minhas narinas, enquanto ouço a voz cada dia menos chorosa e mais acomodada:

“Por que partiu tão cedo, meu amor?”

 

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