Só para deixar claro, estou falando do seu personagem anão e sobre por que, na verdade, seus traços são de um humano. Foi você quem o criou e é quem o interpreta, correto?
Os principais traços de todo personagem é ser um humano mascarado
Humano é apenas uma das inúmeras raças do mundo RPGístico, expandindo-se imensamente com personagens de outras mídias. Porém, todos eles, de ewoks e vogons aos anões e fadas, não passam de uma caricatura humana, replicando traços e características nossas. A realidade é que todos os personagens já criados foram criados por seres humanos. Portanto, de certa maneira, sempre serão representações humanas.
Eu acredito ser impossível fazer diferente. Pense em qualquer fantasia sobre um mundo inexistente, com sociedades distintas de povos fictícios. Ao escrever, o autor estará se baseando nos moldes de uma sociedade humana, pois esta é a única sociedade que ele conhece e participa. Nós, seres humanos, somos os únicos seres pensantes, a única sociedade avançada (que conhecemos), os únicos seres com um idioma formal e por aí vai. Então, sempre que criar um personagem, não importa o quão abstrato seja, ainda assim terá traços de um humano. Será um humano mascarado. Uma pedra sem rosto ou expressão, que não fala e não interage com nada ao redor, mas que é capaz de pensar por si própria, ainda assim é um humano abstraído.
Isso parece meio óbvio agora que escrevi, mas o que quero dizer é o seguinte.
A placidez dos elfos de Valfenda, sua altivez e requinte, presentes em seus personagens, cultura e sociedade, são todas características humanas realçadas. O mesmo vale para os anões, mineradores e ferreiros, gananciosos por metal e gemas. Também vale para os vogons e sua infindável burocracia desnecessária. Até mesmo para a vaidosa bruxa má, que não consegue aceitar a idade e devora jovens garotas para absorver sua juventude.
Altivez, ganância, burocracia e vaidade. Todas características e preocupações humanas, realçadas em personagens fictícios de modo que tenhamos empatia ou antipatia por aqueles que as carregam.
Dissecando o humano por trás do personagem
Considerando que o RPG de mesa não é um jogo puramente sistemático, mas também narrativo, os traços de personalidade trazem diversas novas possibilidades aos personagens. E por mais que eles possam ser pessoas inexistentes vivendo em um mundo mágico, seus medos, gostos e vontades ainda dependem do que nós definimos como sendo medo, gosto e vontade.
Enfim chego ao ponto do texto. Abordar traços e características de um ser humano em seu personagem de RPG há de torná-lo mais vivo, criando uma camada mais profunda a ser explorada. Além de grandes objetivos na vida, pense em outros detalhes. De medos e princípios até pormenores. Talvez se sinta desconfortável quando vê uma criatura com chifres. Talvez goste muito de um chaveiro colorido que sempre carrega, e perdê-lo pode significar um abalo emocional enorme. Por quê?
Eu costumo jogar bastante RPG, por mais que já tenha jogado bem mais. Já devo ter criado e jogado com mais de trinta personagens. Em determinado momento de uma campanha, um colega jogador me perguntou o porquê de eu ter tratado uma figura de autoridade de uma determinada maneira. Eu não sabia da resposta na hora. Para mim era apenas a maneira que o meu personagem deveria tratar aquela figura. Levando essa questão para a terapia, descobri que aquela pequena ação dizia mais do que eu imaginava sobre mim e o personagem…
Isso me leva ao próximo ponto.
Não se esqueça que você também é um humano
É espantoso quando paro pra pensar e consigo perceber que cada um desses trinta personagens, por mais distintos que sejam entre si, possuem traços meus. Pode ser algo direto, como uma goblinoide com ansiedade e TDAH. Ou algo muito subjetivo, como ser o mais velho da equipe e sentir um senso de responsabilidade sobre os demais — considerando que desde a adolescência costumo ser o mais velho dentro meu grupo de amigos e tenho um sentimento parecido em relação a eles. Todos seus personagens são partes suas com algo a mais, e é impossível se desfazer disso.
Muitos jogadores, principalmente novatos, tremem as pernas ao tentar definir os traços de seu personagem. Eu acho que existe um caminho fácil a se seguir, que eu, particularmente, gosto muito. Comece a pensar nos seus traços, nos seus gostos, nos seus medos, nas suas manias e cacoetes. Perca um tempinho nisso até encontrar alguma coisa divertida e/ou que se encaixe bem no personagem que está sendo criado. Decida uns três ou quatro destes traços e tá pronto o sorvetinho. Pensar em pessoas próximas e trazer traços que se destaquem também é válido. Talvez expor um medo seu possa ser pessoal demais. Expor o medo inexplicável que seu pai tem por minhocas, talvez não.
Subvertendo os traços humanos do personagem
Depois de já ter se acostumado a atribuir tais características aos personagens, sair desta zona de conforto não é difícil. O que gosto de fazer é pensar em características totalmente opostas e então encontrar o meio do caminho.
Se meu antigo personagem era um elfo paladino, carismático e complacente, a primeira coisa que me vêm à mente é um goblinoide fedorento e maltrapilho. Um assassino sem nenhuma das ânsias élficas e que detesta quaisquer valores ligados ao engrandecimento e orgulho da antiga raça.
A partir daí, diminuo a intensidade destes traços. Em vez de um goblinoide, talvez seja um halfling, ou hynne, como é chamado no mundo de Arton. Ainda baixinho e ligeiro, mas não tão asqueroso. Ele pode não ser fedorento nem maltrapilho, apenas não faz tanta questão de se arrumar ou de tomar banho diariamente por ser preguiçoso demais. Não odeia os elfos, apenas não costuma confiar neles pois não gosta de gente orgulhosa e presunçosa demais. E em vez de assassino, é apenas um batedor de carteiras. Talvez roube exatamente por ter preguiça de aprender a lutar, então ele entra, pega o que precisa ser pego e vai embora.
Com este exercício já temos em mãos um possível próximo personagem. Um hynne ladrão e preguiçoso, que não se dá bem com gente orgulhosa e também não gosta de tomar banho. Agora que penso sobre ele, talvez ter 50 anos de idade pode não ser má ideia. E então ele não é apenas preguiçoso, ele já está ficando cansado, mesmo…
Pois bem. Espero que tenha conseguido dar uma pequena luz àqueles com dificuldades de encontrar tais traços para seus personagens em mesa. O segredo é que, no final das contas, se resume a sermos todos humanos. Mesmo que às vezes também sejamos anões, elfos, hobbits, fadas ou ewoks.