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Balbúrdia Narrativa — Seu anão é um humano mascarado: Criando traços para seu personagem

Só para deixar claro, estou falando do seu personagem anão e sobre por que, na verdade, seus traços são de um humano. Foi você quem o criou e é quem o interpreta, correto?

Os principais traços de todo personagem é ser um humano mascarado

Humano é apenas uma das inúmeras raças do mundo RPGístico, expandindo-se imensamente com personagens de outras mídias. Porém, todos eles, de ewoks e vogons aos anões e fadas, não passam de uma caricatura humana, replicando traços e características nossas. A realidade é que todos os personagens já criados foram criados por seres humanos. Portanto, de certa maneira, sempre serão representações humanas.

Só um ser humano consegue fazer uma coisinha tão fofa e detestável idiota. Créditos a Star Wars.

Eu acredito ser impossível fazer diferente. Pense em qualquer fantasia sobre um mundo inexistente, com sociedades distintas de povos fictícios. Ao escrever, o autor estará se baseando nos moldes de uma sociedade humana, pois esta é a única sociedade que ele conhece e participa. Nós, seres humanos, somos os únicos seres pensantes, a única sociedade avançada (que conhecemos), os únicos seres com um idioma formal e por aí vai. Então, sempre que criar um personagem, não importa o quão abstrato seja, ainda assim terá traços de um humano. Será um humano mascarado. Uma pedra sem rosto ou expressão, que não fala e não interage com nada ao redor, mas que é capaz de pensar por si própria, ainda assim é um humano abstraído.

Isso parece meio óbvio agora que escrevi, mas o que quero dizer é o seguinte.

A placidez dos elfos de Valfenda, sua altivez e requinte, presentes em seus personagens, cultura e sociedade, são todas características humanas realçadas. O mesmo vale para os anões, mineradores e ferreiros, gananciosos por metal e gemas. Também vale para os vogons e sua infindável burocracia desnecessária. Até mesmo para a vaidosa bruxa má, que não consegue aceitar a idade e devora jovens garotas para absorver sua juventude.

Altivez, ganância, burocracia e vaidade. Todas características e preocupações humanas, realçadas em personagens fictícios de modo que tenhamos empatia ou antipatia por aqueles que as carregam.

Dissecando o humano por trás do personagem

Considerando que o RPG de mesa não é um jogo puramente sistemático, mas também narrativo, os traços de personalidade trazem diversas novas possibilidades aos personagens. E por mais que eles possam ser pessoas inexistentes vivendo em um mundo mágico, seus medos, gostos e vontades ainda dependem do que nós definimos como sendo medo, gosto e vontade.

Enfim chego ao ponto do texto. Abordar traços e características de um ser humano em seu personagem de RPG há de torná-lo mais vivo, criando uma camada mais profunda a ser explorada. Além de grandes objetivos na vida, pense em outros detalhes. De medos e princípios até pormenores. Talvez se sinta desconfortável quando vê uma criatura com chifres. Talvez goste muito de um chaveiro colorido que sempre carrega, e perdê-lo pode significar um abalo emocional enorme. Por quê?

Eu costumo jogar bastante RPG, por mais que já tenha jogado bem mais. Já devo ter criado e jogado com mais de trinta personagens. Em determinado momento de uma campanha, um colega jogador me perguntou o porquê de eu ter tratado uma figura de autoridade de uma determinada maneira. Eu não sabia da resposta na hora. Para mim era apenas a maneira que o meu personagem deveria tratar aquela figura. Levando essa questão para a terapia, descobri que aquela pequena ação dizia mais do que eu imaginava sobre mim e o personagem…

Isso me leva ao próximo ponto.

Não se esqueça que você também é um humano

É espantoso quando paro pra pensar e consigo perceber que cada um desses trinta personagens, por mais distintos que sejam entre si, possuem traços meus. Pode ser algo direto, como uma goblinoide com ansiedade e TDAH. Ou algo muito subjetivo, como ser o mais velho da equipe e sentir um senso de responsabilidade sobre os demais — considerando que desde a adolescência costumo ser o mais velho dentro meu grupo de amigos e tenho um sentimento parecido em relação a eles. Todos seus personagens são partes suas com algo a mais, e é impossível se desfazer disso.

Muitos jogadores, principalmente novatos, tremem as pernas ao tentar definir os traços de seu personagem. Eu acho que existe um caminho fácil a se seguir, que eu, particularmente, gosto muito. Comece a pensar nos seus traços, nos seus gostos, nos seus medos, nas suas manias e cacoetes. Perca um tempinho nisso até encontrar alguma coisa divertida e/ou que se encaixe bem no personagem que está sendo criado. Decida uns três ou quatro destes traços e tá pronto o sorvetinho. Pensar em pessoas próximas e trazer traços que se destaquem também é válido. Talvez expor um medo seu possa ser pessoal demais. Expor o medo inexplicável que seu pai tem por minhocas, talvez não.

Todos seus personagens são você, cara. *Sussurra* Todos eles…

Subvertendo os traços humanos do personagem

Depois de já ter se acostumado a atribuir tais características aos personagens, sair desta zona de conforto não é difícil. O que gosto de fazer é pensar em características totalmente opostas e então encontrar o meio do caminho.

Se meu antigo personagem era um elfo paladino, carismático e complacente, a primeira coisa que me vêm à mente é um goblinoide fedorento e maltrapilho. Um assassino sem nenhuma das ânsias élficas e que detesta quaisquer valores ligados ao engrandecimento e orgulho da antiga raça.

A partir daí, diminuo a intensidade destes traços. Em vez de um goblinoide, talvez seja um halfling, ou hynne, como é chamado no mundo de Arton. Ainda baixinho e ligeiro, mas não tão asqueroso. Ele pode não ser fedorento nem maltrapilho, apenas não faz tanta questão de se arrumar ou de tomar banho diariamente por ser preguiçoso demais. Não odeia os elfos, apenas não costuma confiar neles pois não gosta de gente orgulhosa e presunçosa demais. E em vez de assassino, é apenas um batedor de carteiras. Talvez roube exatamente por ter preguiça de aprender a lutar, então ele entra, pega o que precisa ser pego e vai embora.

Com este exercício já temos em mãos um possível próximo personagem. Um hynne ladrão e preguiçoso, que não se dá bem com gente orgulhosa e também não gosta de tomar banho. Agora que penso sobre ele, talvez ter 50 anos de idade pode não ser má ideia. E então ele não é apenas preguiçoso, ele já está ficando cansado, mesmo…

Pois bem. Espero que tenha conseguido dar uma pequena luz àqueles com dificuldades de encontrar tais traços para seus personagens em mesa. O segredo é que, no final das contas, se resume a sermos todos humanos. Mesmo que às vezes também sejamos anões, elfos, hobbits, fadas ou ewoks.

Balbúrdia Narrativa — O RPG Além do Combate: Resolvendo conflitos de forma não violenta

RPG Além do Combate

Rolar a iniciativa é um dos prazeres mais banais para qualquer jogador de RPG, pois além de um momento aguardado, também é planejado. Habilidades e magias aprendidas ao longo dos níveis, pontos de atributo calculados, tudo enquanto pensava no bônus de dano lá na frente. Porém, existe um universo muito maior no RPG além do combate.

Batalhar parece uma coisa tão intrínseca do RPG que às vezes pode ficar difícil separar uma coisa da outra. É claro que cada campanha é uma campanha e cada sistema é um sistema. Mas mesmo em um sistema de RPG com outros focos além do combate, em todos eles na grande maioria deles as regras para a porradaria generalizada ainda estão presentes.

Uma vez me explicaram que um grupo de RPG é como uma estrela de cinco pontas. O tanque na ponta de cima, protegendo o grupo enquanto recebe e aguenta dano. Ladinos, caçadores, magos e etc. nas pontas laterais, logo atrás do tanque, dando a maior quantidade de dano que conseguirem. Nas duas pontas mais embaixo, grande parte dos clérigos, bardos e outros personagens de suporte ou perícias sociais.

São nestas duas últimas pontas que quero divagar durante este texto.

RPG e o seu combate além da porradaria

Quando um personagem sem foco em batalha está no grupo, normalmente lhe é reservada a posição de curandeiro. Apesar de ser uma função importantíssima, eu não diria que é absolutamente necessária. Mesmo que esta pessoa muitas vezes se encarregue de ter habilidades para tornar aliados mais fortes — o famoso buff.

Se não há ninguém para curar o grupo, que invistam em poções de cura ou outras habilidades que os mantenham vivos. A chance de dar merda cedo ou tarde é grande, eu sei. Mas isso provavelmente vai acontecer porque o bárbaro ou a guerreira do grupo vão correr desenfreadamente para cima do inimigo querendo sangue. Mesmo que exista a possibilidade de desarmá-lo em vez de arrancar seu braço.

Claro que não estou dizendo para conversar com um ogro e pedir para que lhe abra caminho. Estou apenas sugerindo a pensar de maneira não usual.

Se você joga em um sistema onde existe magia, talvez nem mesmo metade delas cause dano. Muitas lhe dão a possibilidade de controle, permitindo modificar o cenário de alguma forma. Transformar terra em lama e então solidificá-la novamente para prender os inimigos no chão. Invocar uma ilusão para distraí-los enquanto os jogadores planejam se fogem ou tentam rendê-los. Em vez de bola de fogo, por que não usar uma magia de sono ou que faça o inimigo perder a vontade de lutar?

Sono parece efetivo contra moleques enxeridos (Scooby-Doo)

Na prática, bola de fogo e magia de sono teriam um resultado semelhante: os inimigos seriam postos para dormir. O combate seria resolvido. Porém, a beleza do RPG mora exatamente na forma com que os jogadores decidem resolver seus problemas e no que isso acarreta. Na decisão de usar sono, e não bola de fogo, e como o mestre conseguirá desenrolar o resultado a partir disso.

E o que fazer além de combate?

O mestre do RPG é a pessoa mais capaz de propiciar situações além do combate, pois é quem decidirá a maioria dos conflitos do jogo. E toda narrativa precisa de conflitos, correto? É compreensível como o combate, sendo uma forma tão prática e impactante de conflito, acaba sendo o principal recurso utilizado em uma campanha. Porém, ao pensarmos no cenário de uma campanha como um mundo próprio, as possibilidades que existem além do combate no RPG começam a ficar mais abrangentes.

Tramas políticas ou investigativas são exemplos de temas que não exigem combates constantes e costumam se encaixar em grande parte dos cenários de RPG. Aqui, inteligência e carisma não precisam ser apenas atributos do personagem, mas podem também ser instigados nos jogadores para que resolvam seus conflitos.

Além disso, um simples bêbado seguindo o grupo e enchendo o saco por um trago pode se revelar um encontro interessante. Quem sabe o homem se revele de grande conhecimento e um possível aliado? Porém, isso dependerá inteiramente da maneira como o grupo decidir interagir com ele e o quão astutos serão para entender quem o homem realmente é. Ignorá-lo por completo, dar uma moeda e ir embora ou recebê-lo aos murros também irão resolver a cena, mas definitivamente não da melhor forma.

O combate é insubstituível

Não me entendam mal. Eu sei que nada substitui um bom combate. Mas às vezes pode ser interessante sair do usual e jogar com um personagem que não seja um assassino inconsequente.

Ainda não tive a honra de jogar com um grupo onde todos os personagens não são combatentes, mas pretendo viver para isso. Estou ciente da probabilidade de um massacre assim que pisarmos fora da cidade, mas, como os jovens de alguns anos atrás diziam, YOLO.

Se quando o massacre acontecer, farei questão de vir aqui explicar porque não se deve jogar com um grupo composto apenas por não combatentes.

Balbúrdia Narrativa — Campanhas longas de RPG: O que é preciso lembrar

Em meio à pandemia que chegou no último ano, sem faculdade e sem emprego, eu me afoguei em campanhas longas de RPG por meses a fio. Me comprometi a narrar mais de meia dúzia de mesas com frequência praticamente semanal, e até que lidei bem com os compromissos durante um ano. Porém, eis que a bela poesia caótica do universo decidiu me dar um estágio que me tomou todo o tempo que tinha e um pouquinho a mais. Resultado: meses sem narrar.

Ainda me acostumando com a rotina de um trabalhador desesperado, resolvi que estava na hora de retomar as mesas devagar, uma a uma. Mas depois de tanto tempo parado, o que exatamente eu precisaria trabalhar e o que seria bom de me lembrar — e lembrar aos jogadores — para fazer com que campanhas longas de RPG fossem retomadas com naturalidade?

Antes de mais nada…

Quero deixar claro que estes tópicos são relevantes ao decorrer de qualquer mesa de jogo, e não apenas no término de um hiato ou coisa do tipo. Qualquer campanha de RPG longa o suficiente precisa refrescar a memória do mestre e jogadores sobre determinados assuntos. Caso contrário, objetivos acabam sendo esquecidos, a imersão pode se tornar mais rasa e aquela história e personagens acabam sendo acidentalmente jogados ao descaso — erro que já cometi inúmeras vezes como mestre.

Quem são os protagonistas da campanha?

Todos ainda devem se lembrar dos nomes dos personagens e têm quase certeza que o bárbaro é um humano, e não um anão com gigantismo. Para se certificar, revisem suas fichas em conjunto. Este exercício é tão importante para o mestre quanto para os jogadores, afinal, você raramente vai enfrentar qualquer situação sozinho, então ter noção das habilidades e modificadores de seus companheiros não apenas acrescenta para o potencial do grupo, mas também cria um tipo de sinergia mecânica forte entre os personagens — em outras palavras, você comba com o amiguinho.

Revivendo a trajetória em campanhas longas de RPG

Muito bem, fichas revisadas. Dados em mãos, fichas na mesa, latão aberto e o jogo começa.

Agora, mestre, relembre aventuras passadas. Desafios que o grupo enfrentou unido e saiu vitorioso — ou foram derrotados. Recorde os momentos que fizeram com que estivessem onde estão. Adicione referências sutis à narrativa, instigue os jogadores com elementos que irão chamar seu interesse e farão com que se lembrem das situações. E assim, pincelada por pincelada, a imersão vai se revitalizando.

Um devoto de um deus rival pregando na praça da cidade deve chamar a atenção do clérigo e relembrar o grupo sobre os valores de seu companheiro. Um latoeiro vendendo um escudo pesado de segunda mão pode fazê-los pensar na morte trágica do guerreiro que os acompanhava. Uma pessoa da mesma raça do vilão da campanha adentrar a taberna vazia pode fazer com que sintam a urgência de seus objetivos. O que me leva ao próximo ponto…

Em campanhas longas de RPG, o que mantém o grupo unido?

Um grupo não costuma funcionar muito bem a não ser que tenham alguma coisa que os prendam uns aos outros. Companheiros de longa data podem depender de mera empatia, mas se estão juntos há tanto tempo, provavelmente foi porque em algum momento já tiveram um objetivo em comum.

Quais são eles? — no plural, sempre. Não estou falando apenas do objetivo principal da história, o vilão a ser derrotado, o plano a ser impedido, etc., mas sim de cada busca pessoal dos personagens envolvidos nela. Reavivar estes propósitos individuais insere o personagem — e jogador — novamente naquele mundo ao mesmo tempo que fortalece o vínculo entre o grupo.

O mundo do qual pertence o personagem

Por fim, a necessidade de trabalhar a ambientação da campanha mais uma vez. Como já aprofundado em um texto passado, é sempre bom manter em mente que os personagens fazem parte de um mundo muito maior, e certamente são influenciados por ele muito mais do que o oposto. Como todos estão sujeitos aos seus eventos, tocar em fatos relevantes e grandes acontecimentos recentes que podem impactá-los pode ser importantíssimo.

Conflitos políticos e militares, como a opressão de um estado por um governante pouco diplomático. Eventos históricos como guerras, assassinatos reais ou um vulcão que dizimou o país vizinho — e suas conspirações sobre ter sido uma catástrofe controlada. Dependendo do cenário de RPG que esteja jogando, tramas grandiosas e divinas, como a recente queda do maior dos deuses dentro de seu próprio império, provavelmente é algo que vale a pena ser comentado.

Resumiiiindo

Definitivamente existem diversos outros tópicos a serem considerados, e eles dependem muito da campanha, do mestre e dos jogadores. A imersão desejada, a profundidade de cada parte do sistema e do cenário, e por aí vai. Mas garanto que estes pontos aqui apresentados formam uma boa “cama de gato” para sustentar as sessões.

Não é difícil de esquecer o que aconteceu há meia dúzia de sessões, quem dirá há meses, um ano, dois ou mais. Às vezes tudo pode parecer mais claro na cabeça do mestre, mas não costuma ser bem assim quando se está jogando, e por isso, estas “pinceladas” aqui e ali sempre ajudam a manter o vigor de longas campanhas de RPG.

Quais outros aspectos você acredita serem importantes para a campanha e devem ocasionalmente ser relembrados? Deixa pra gente aqui nos comentários!

Balbúrdia Narrativa — Conflitos de interesse: Toda narrativa precisa de problemas

conflitos de interesse

Eu não sou, nem de perto, um grande criador de histórias. Mas uma certeza que tenho nesta não tão vasta experiência como escritor e mestre de RPG é que não existe trama sem conflito. É importante deixar isso bem claro na cabeça, caro escritor e mestre de RPG, pois gerar estes conflitos é uma de suas grandes responsabilidades — mesmo que não seja exclusivamente sua. Mas calma lá! Isto não significa que uma batalha entre protagonistas e vilões precisa acontecer toda sessão de jogo, por mais que muitas vezes satisfaça esta necessidade.

Conflitos são obstáculos, são empecilhos, são acontecimentos ou até mesmo personagens que se opõem aos protagonistas de alguma maneira e atrapalham e/ou tentam impedi-los de cumprirem seus objetivos. O combate é a forma mais comum de conflito em um RPG, é claro, e acredito que seja um ótimo exemplo para começar esse texto.

Por que existe conflitos de interesse entre herói e vilão?

Provavelmente porque o vilão é maligno. Parece um pouco óbvio, mas o ponto é exatamente esse. Dê um passo para trás, analise a situação como um todo e observe que um típico conflito de interesse entre o bem e o mal é, na verdade, um conflito que envolve a moralidade dos envolvidos. E, por mais que estejamos acostumados a presenciar este clássico embate de heróis contra vilões, luz contra trevas, se nos mantivermos presos a este tipo de conflito, a trama pode cansar bem rápido…

Quando comecei a mestrar RPG, os conflitos que preparava eram normalmente grandiosos. Inclusive, até hoje narro uma campanha onde meu maior arrependimento foi fazer o vilão ter objetivos divinos enquanto o grupo ainda estava no nível 3.

Em campanhas recentes, isso nunca aconteceria assim tão cedo.

Com esta ideia de conflito moral em mente, uma coisa que gosto de fazer é tentar me basear na vida real. Eventos que vivenciamos ou ou notícias que lemos normalmente resultam em ótimas adaptações para uma história.

A arte imita a vida?

A cada semana, somos bombardeados por manchetes sobre o desmatamento da Amazônia e como isso pode resultar no declínio do ecossistema e extinção de espécies. Agora pense em druidas que vivem na mata e entram em conflito com imigrantes recém chegados que começaram a derrubar árvores para erguerem suas moradas. Mesmo que não envolva batalhas, ainda é um conflito, não entre bem e mal, mas sim um conflito moral.

Um pensamento ainda mais simples e que acho bem importante de se recordar é que personagens, por mais abstratos que possam ser, ainda são baseados em seres humanos. Isto significa que possuem interesses, crenças, vontades e individualidades, e qualquer um destes pontos que se contrapõem entre dois personagens pode gerar um conflito.

Seu vizinho gosta de escutar som alto. Você, não. Eis um conflito de interesse.

Criar conflitos de interesse não é responsabilidade exclusiva do mestre!

Como mestre, gostaria de pedir uma coisa a todos os jogadores que pretendem jogar uma campanha que não seja muito curta: não resolva todos os conflitos do passado do seu personagem ainda no background (aos leigos, background é toda a sua história anterior ao início da campanha). Não precisa ser nada grandioso como uma vingança pessoal ou a intenção de se tornar uma divindade. Um objetivo íntimo e particular, como um parente perdido, já pode ser o suficiente. Talvez algo ainda mais simples, como catalogar plantas ou animais. Estas pontas soltas fazem com que o mestre tenha mais material para trabalhar, e cada uma delas pode evoluir para um novo conflito.

Independente da forma com que apareça, conflitos morais e de interesse costumam ser, mesmo que não percebamos, o ponto central de inúmeras tramas que lemos, jogamos e assistimos.

Lembra-se de algum conflito de explodir a cabeça que presenciou em alguma obra ou mesa de RPG? Compartilha com a gente aqui nos comentários!

Balbúrdia Narrativa — Trabalhando conflito no RPG: Dicas de Convivência para Jogadores Empolgados

conflito no RPG

Depois de ter publicado meu último texto, onde comentei um pouco sobre os desprazeres que um jogador entusiasmado demais pode trazer para um grupo, fui lembrado por um amigo sobre um tipo de babaca que acabei por me esquecer: aquele que desenvolve seu personagem inteiro com o objetivo de criar conflito na mesa.

Porém, não entenda mal. Este tipo de jogador nem sempre precisa ser um babaca. Na verdade, divergências entre os personagens é uma maneira excelente de causar conflito no RPG para desenvolver a narrativa de uma campanha. Apenas tome cuidado para que eles não se tornem maiores do que os objetivos que o grupo tem em comum.

Tem gente que só quer tacar fogo no parquinho

A Ovelha Brilhosa do Grupo

Aqui vai uma curta reflexão sobre como Adelaide Ossos de Farinha, uma sacerdotisa da vida e da cura que jogo nas mesas do Léo, viaja acompanhada de Rabicó Leite de Pedra, um bárbaro de colete e machado, e de Norbit Três-Dedos, um assassino goblinoide.

Primeiramente, Rabicó é filho de Adelaide. Por ter sido uma pessoa muito ocupada em missões sagradas ao longo da vida, Rabicó se criou longe da mãe pela maior parte do tempo, e nunca havia matado ninguém na frente dela até pouco tempo.

Aqui já temos um conflito interessante. Uma mãe ausente que vê o filho com valores morais tão diferentes dos seus e que agora se compromete a tentar fazê-lo enxergar os erros que comete. Ainda assim, Rabicó é um rapaz bem-criado, que escuta e respeita a vontade da mãe. E por mais que o filho seja apegado ao machado como ferramenta, Adelaide encara o desafio de fazê-lo entender que seus punhos podem ser uma arma tão poderosa quanto (e bárbaro lutador dá um combo BEM interessante, também).

Goblin: a chave para causar conflito no RPG

Porém, com Norbit a situação é um pouco mais delicada. O goblinoide é um mistério. Talvez tenha sido um escravo no caído Império Táurico, ou simplesmente um sobrevivente que cresceu na selvageria de Arton-sul. Três-Dedos é o famoso tipo que atira primeiro e pergunta depois. Por vezes zomba dos conselhos de Adelaide e acredita ferrenhamente que sua empatia é uma fraqueza.

Levou algum tempo até que Adelaide começasse a entender que esta era a única maneira que Norbit havia aprendido a resolver seus problemas. Sempre com adagas e mordidas frente a qualquer situação, é como se fosse um animal silvestre forçado a viver em sociedade.

O grupo funciona

Toda vez que entramos em combate, eu, como Adelaide, sempre tento proteger a todos, usando magias de encantamento até mesmo em meus próprios aliados para que eles não sejam capazes de tirar a vida de seus adversários. No início, tentava impedir que usassem suas armas, quase permitindo que criminosos fugissem impunes por isso. Porém, em determinado momento, surgiu-me o pensamento: será que eu não estou sendo um babaca por mudar as ações e decisões dos demais jogadores por este conflito?

Bem, até o momento eu acredito que não, por que o grupo funciona e as situações ainda se resolvem de outra maneira. Quando a magia de Adelaide não permite arrancar a cabeça de uma aranha gigante, eles encontram uma forma de derrubá-la pata a pata. Se conversar com Norbit não é o suficiente para fazê-lo entender que não se deve matar os outros apenas pela facilidade do trabalho, Adelaide talvez tenha que aprender a ter a humildade de um goblinoide para ganhar sua confiança.

Essa liberdade para colocar conflito na mesa não vem do nada. É uma mesa com amigos que se conhecem, que sabiam ainda na criação de fichas, quando foi determinado que os personagens seriam mãe e filho com visões de mundo opostas, que esse tipo de situação aconteceria. Mais que isso, é uma mesa jogada por pessoas com intimidade o suficiente para uma virar para a outra e falar “larga minha espada, seu babaca.” O conflito no RPG é possível porque não há conflito quanto a isso fora do RPG.

Conflito no RPG e o Caminho do Herói

Atualmente estamos dentro de Aslothia, uma nação tomada pela cultura necromântica, mas que, surpreendentemente, ainda abriga vida de uma maneira muito peculiar. Nosso objetivo atual é juntar informações sobre um barão, provavelmente um vampiro, e identifica-lo como uma ameaça real ou não.

Rabicó e Norbit possuem propósitos heroicos, mesmo que não queiram admitir. Além disso, Adelaide preza pela vida e condena a violência desnecessária. Cura os feridos e impede a morte de inocentes. Por mais que os ideais da clériga sejam o principal motivo dos conflitos do grupo, são valores que atribuímos a típicos personagens bondosos. Bons valores sempre costumam causar um bom conflito no RPG, também. Por mais que o conflito exista, ele vem de convicções factíveis dos personagens, e não de pura vontade de atazar todos os demais envolvidos.

Em outras palavras, o conflito vem das diferentes visões de mundo dos envolvidos do que seria “heroísmo”. Se este fosse um grupo de inocentes heróis e o personagem que causasse conflito fosse um necromante sanguinolento, este provavelmente não seria um bom grupo para se usar de exemplo neste texto, porque aí estaríamos lidando com um vilão, e a dinâmica seria completamente diferente.

Vocês já jogaram em uma mesa onde o conflito entre os personagens serviu para enriquecer a experiência? Conta pra gente nos comentários.

Balbúrdia Narrativa — Não Seja um Babaca: Dicas de convivência no RPG para jogadores empolgados

convivência no RPG

Não é tão difícil de entender isso, eu sei, e também sei que você sabe. Porém, ao tratar do nosso bom e velho RPG de mesa, alguns jogadores tendem a ser tomados pela síndrome do protagonismo ou a abusar da desculpa de estar agindo sob a perspectiva do personagem, e tomar a liberdade de serem babacas. No meu último texto aqui do blog, escrevi sobre a importância do manual de RPG para definir limites mecânicos na “brincadeira de imaginação” que é esse hobby. Agora, quero falar sobre convivência no RPG e alguns limites um pouco mais subjetivos.

O protagonismo no RPG é coletivo!

Se você não está jogando um livro-jogo, onde joga sozinho uma história pré-definida que cerca seu personagem, provavelmente estará acompanhado de pelo menos mais dois ou três jogadores. Isso significa que todos fazem parte dessa trama, e todos são responsáveis por leva-la adiante. Ainda assim, não é incomum encontrar grupos onde um ou dois personagens acabam tomando a frente em todas as situações e tentam resolver tudo sozinhos, resumindo os demais em uma simples ficha e rolagens de dados em momentos específicos. Eu acredito que uma das funções do mestre seja a de instigar estes personagens-jogadores deixados no escanteio. Trazer alguma figura de seu passado para interagir com ele ou ela ou desenvolver uma cena importante em um momento em que esteja sozinho são boas opções. Porém, é essencial que todos os jogadores entendam a importância do protagonismo coletivo a todo momento.

Ei, bárbaro cheirando a suor vestindo uma tanga manchada de sangue, com penalidade em inteligência e carisma! Por que você está conversando com esta baronesa de maneira tão formal e cordial enquanto o seu parceiro, cavaleiro com conhecimento em etiqueta e aristocracia, está contando formigas ali atrás? Ah, é por que a jogadora é tímida? Então incentive-a, boa convivência no RPG também é lembrar que vocês são um time!

As ações de seu personagem também são suas

Você e seu grupo terminaram a masmorra depois de várias sessões de preparação, derrotando o vilão da campanha de maneira excepcional. Portanto, decidem comemorar torrando os espólios na taverna mais sofisticada da capital. Comem e bebem feito reis, menestréis sobem ao palco para entoar baladas sobre vossos feitos. Eis que, no ápice caloroso da noite, um dos personagens decide que é uma ótima ideia abaixar as calças e se esfregar despido nas pessoas ao redor. Não, meu amigo, pelo amor e ódio de cada deidade que já foi adorada na história da humanidade, isso não é uma boa ideia.

Um (des)exemplo

Esse exemplo que dei é um exagero de uma situação que eu quase presenciei em uma mesa. O jogador percebeu o incômodo do mestre e demais jogadores e fechou o cinto antes de agir. Porém, aqui vai um outro exemplo que não é exagerado e foi vivido por mim:

Um tempinho atrás joguei em uma comunidade com uns vinte jogadores, como uma pequena guilda exclusiva a conhecidos e amigos dos organizadores. Em algumas missões, um dos meus colegas de grupo foi um bardo descomedido, o típico artista que queria aparecer demais, porém, sem um pingo de bom senso ou moderação. Ressaltava a musculatura e virilidade do guerreiro, o calor e intensidade da cura da clériga. Sempre com uma forte conotação sexual. Fazia piadas sobre a velocidade do ladino…

O jogador se defendia com o mesmo velho argumento de que não era ele quem estava agindo, e sim o seu personagem. Mas não se esqueçam, rapaziada, que quem controla seu personagem é você. O objetivo do RPG é se divertir, e se o seu personagem age de maneira a deixar qualquer outra pessoa na mesa desconfortável, quem está causando o desconforto é você. Ou seja, você está sendo o babaca.

Tem mais alguma dica sobre como não ser um babaca na mesa? Compartilha com a gente nos comentários.

Para mais bons exemplos de convivência no RPG, você pode acompanhar Fim dos Tempos toda quinta-feira, às 20 horas, no Twitch da Jambô Editora

Balbúrdia Narrativa — Manual de regras de RPG: Leia, mas não se apegue

Antes de mais nada, gostaria de ressaltar o óbvio, mas que muitas vezes é ignorado, principalmente por jogadores em início de carreira: ler o manual de regras do RPG que está jogando é importantíssimo. Mesmo que eu goste de pensar e apresentar o RPG como sendo uma forma de narrativa tão única e do caralho quanto filmes ou romances, ele é, além disso, um jogo, e assim como todo jogo, possui um sistema de regras que deve ser seguido.

Pessoas que desconhecem o RPG podem enxergá-lo como uma brincadeira de faz de conta, um teatro sem roteiro e sem público, ou algo do tipo. Mas a diferença está exatamente na liberdade que você, como personagem, possui dentro da história que participa. Em uma mesa de RPG, fazer o que bem entender não significa que você vai ser necessariamente bem sucedido naquilo. Se você está aqui neste site, lendo este texto, provavelmente sabe que o RPG consiste em inúmeros testes baseados em rolagens de dados que irão determinar o sucesso ou falha de uma ação. O objetivo do manual é explicar quais são as possibilidades desta ação e, talvez mais importante, quais são os seus limites.

Jogador x Manual

Não haveriam muitos desafios caso todo ataque desferido atingisse o inimigo e toda porta trancada fosse arrombada com um palito de dentes. Limites e possibilidades, sucessos e falhas. Isso concede ao RPG uma camada de realidade, permitindo existir a chance do protagonista acabar morto por ter falhado em um teste de Diplomacia contra o rei.

Aah, se a vida fosse brincadeira, não é, Ned?

O manual de regras existe para ajudar a manter os pés no chão enquanto a trama se desenvolve. Porém, caso o sistema seja usado de maneira muito pragmática, ele pode acabar restringindo a criatividade dos jogadores na hora de interagir com o cenário.

Quando estou mestrando, especialmente para pessoas menos experientes, não é raro vê-las se entreolhando em silêncio em meio a uma cena em que não parece existir uma solução muito evidente. A sensação é de que eles aguardam o jogo agir por si só. Em outras palavras, esperam que o caminho a ser seguido se revele ou que a próxima pista seja entregue.

Quebre as regras do manual, mas só depois de tê-las aprendido

O grupo está investigando alguns criminosos locais, e possuía alguns indícios de onde seria seu próximo assalto. Porém, entraram em conflito com os foras da lei, e acidentalmente mataram todos eles. Sem suspeitos para serem interrogados, o ladino tenta encontrar informações através de um teste da perícia Investigação, mas falha. Os jogadores leem o manual para revisar cada uma de suas proficiências, perícias e poderes, mas, segundo as regras escritas, não há mais nada que possam utilizar para encontrar uma nova pista.

Nesta situação, a criatividade deve ser muito bem-vinda. Soluções inesperadas para os problemas que se enfrentam em uma campanha de RPG costumam resultar em situações memoráveis.

Se algum membro do grupo é um mentiroso dissimulado, pode espalhar falsas notícias pela cidade sobre um próximo alvo fácil para os bandidos, e então emboscá-los. Caso outro membro seja um apostador de jogos de azar, por que não apostar por informações? Se o grupo estiver com algum dinheiro sobrando, poderiam buscar por algum conjurador poderoso que pudesse se comunicar com o espírito de um dos criminosos assassinados.

Ainda que nenhuma destas possibilidades esteja escrita no manual, o mestre sempre pode permitir que coisas aconteçam ou deixem de acontecer se assim ele acreditar que faça sentido.

Em cenas de tensão e combate, tais dicas podem ser ainda mais interessantes. Em algum momento de sua jornada, os jogadores provavelmente irão esbarrar em ameaças maiores do que eles, mortais se enfrentadas da maneira que estão acostumados. Se o cavaleiro maligno tem uma armadura intransponível, talvez bater de frente talvez não seja a melhor opção. Em vez disso, jogue a corda para seu companheiro e se preparem para derrubá-lo do penhasco!

Em resumo, leia o manual! Quatro, sete, vinte vezes! Ele é a forma que o jogo que você está jogando foi pensado e estruturado. Porém, não se apegue a ele. Use e abuse de sua criatividade, pois o pior que pode acontecer é você ouvir o mestre dizendo “não, você não pode resistir ao dano de um tiro com um teste de Vontade.

Balbúrdia Narrativa — O universo além da mesa: um pouco sobre construção de mundo

construção de mundo

Eis que no ano de 2020 o caos e a desgraça reinava não apenas no planeta inteiro, mas também dentro da cabeça de cada pessoa que conseguiu se isolar para cumprir com o básico da sobrevivência humana. Comigo não foi diferente. Faculdade trancada, desempregado e contato social próximo a zero por ter voltado a morar na casa dos meus pais enquanto eles se retiravam para um sítio da família a 10km do sinal de celular mais próximo. Como refúgio pro desespero da insanidade mental, resolvi me afogar em RPG, chegando a participar de onze mesas frequentes, jogando quatro e mestrando sete. Um pouco de mais, talvez.

Porém, tendo que planejar tantas sessões em tão pouco tempo, em alguns momentos de devaneio me deparei com uma verdade bem óbvia quando se para pra pensar: toda história, seja uma campanha de RPG, um romance, filme ou qualquer outra narrativa, é apenas uma série de acontecimentos que aquele mundo ficcional permitiu que acontecesse dentro de suas regras e possibilidades. Vamos falar um pouco sobre construção de mundo.

Construção de mundo: Os mecanismos por trás de cada história

Claro que, ao escrever um livro cuja história seja ambientada em um cenário autoral, quem escreve determina quais são as leis que irão reger aquele universo, para que então a história possa fazer sentido ali dentro. As varinhas mágicas do mundo de Harry Potter, por exemplo, são um elemento fundamental na construção de mundo, pois uma das “leis” deste universo é os bruxos se utilizarem destes artefatos para facilitar a canalização de feitiços. Porém, se J.K. Rowling, na época em que ainda agia como uma pessoa sã, enquanto ainda desenhava o primeiro livro da saga, tivesse determinado que os bruxos não se equipavam de varinhas, mas sim de cajados mágicos, isto não seria apenas uma mudança estética na história de Harry e companhia, mas sim uma mudança impactante em todo o mundo da magia.

Transformar um objeto simples e pequeno, que poderia ser facilmente guardado em um bolso discreto do casaco, em um pedaço de madeira maior do que um aluno calouro definitivamente acarretaria em cenas e situações completamente diferentes das que já lemos e assistimos, desde o momento em que Harry é escolhido pelo cajado forjado com pena de fênix em uma loja do Beco Diagonal, até o momento em que o cajado dos cajados é retirado das mãos do velho e frio professor Dumbledore. O que quero dizer com tudo isso é que todas as histórias necessitam de elementos que façam parte daquele mundo para que possam funcionar.

RPG também é uma forma de contar história

Agora, transportando esta ideia para dentro de uma campanha de RPG, lugar onde a narrativa é desenvolvida coletivamente com os seus protagonistas, quando o narrador conhece bem o suficiente os elementos do cenário, não necessariamente do mundo todo, mas apenas da região em que estão os personagens, o desenrolar da trama – e do improviso – se torna muito mais natural. Claro que o mestre não precisa saber quem foi o bisavô materno do padeiro da vila, mas o fato de existir um padeiro na vila já é um elemento que pode ser desenvolvido dentro do jogo.

Os elementos que gosto de definir na construção de mundo são a geografia, cultura, economia, costumes, religião e política da região em que os personagens irão se aventurar. E isso não é tão complicado assim.

Vou pular direto para um exemplo tirado de uma mesa que narrei no sistema Tormenta 20, ambientada em Arton.

O grupo havia partido da nação de Deheon e estava viajando a cavalo rumo ao reino de Fortuna para se encontrar com um aristocrata que havia lhes enviado uma proposta de trabalho, viagem esta que levaria pouco mais de três semanas. Eu sabia que a sessão — ou sessões — em que os jogadores passariam na estrada não teria um impacto considerável na campanha como um todo, sem grandes conflitos com vilões ou viradas de trama — a não ser que uma sequência inglória de erros críticos tirasse a vida de alguém —, mas não estava muito inclinado a resumir uma jornada de quase um mês a eventos aleatórios, rolagens banais ou simplesmente com “passou um mês e vocês chegaram”.

Conhecendo o mundo da sua mesa de RPG

Ao término da sessão anterior, o grupo havia decidido viajar pelo interior do continente, região mais rochosa e fria devido à proximidade com as nevadas Montanhas Uivantes, de terreno acidentado e árduo (geografia). Por ser uma terra desolada e com pouca diversidade de fauna e flora, decidi que o ofício mais comum dos moradores locais seria a extração de minérios em pedreiras e em minas de ferro (cultura), tornando a exportação destes materiais o principal comércio dali (economia). Por viverem em uma área tão desolada, afastada das principais rotas de viagem, normalmente os moradores não enxergavam estrangeiros com bons olhos (costumes).

As crenças na região eram variadas, mas pouquíssimas das civilizações erguiam altares. A maior exceção era uma cidadezinha habitada principalmente por humanos e anões, chamada Rocha de Grís, que possuía uma humilde igreja de Allihanna (religião). Por fim, a alta-sacerdotisa de Rocha de Grís fazia questão de lembrar a todos que a pedra e o metal também eram frutos da terra, e que a prospecção excessiva destes frutos poderia trazer consequências severas, ao mesmo tempo em que o líder da guilda dos comerciantes da cidade estava tensionando seu relacionamento com a igreja, pois as palavras da clériga deixavam os mineradores receosos e atrapalhava seus negócios (política).

A primeira parte da construção de mundo está pronta. Isto era tudo o que eu havia preparado e, com isto estabelecido, tornou-se prático desenvolver o restante da sessão a partir da curiosidade e ações dos jogadores.

Que entrem os jogadores!

Depois de passarem por testes de Sobrevivência e Cavalgar para se guiarem através de colinas pedregosas e fugirem de uma avalanche ao terem falhado nestes testes, chegaram a Rocha de Grís em um fim de tarde nebuloso. Percebendo olhares desconfiados em todo canto, a feiticeira sugeriu reabastecer os mantimentos e partir em seguida para que não causassem problemas, mas eu não queria que isso acontecesse, pois chegariam rápido demais ao objetivo final da viagem. Então, fiz um jovem pupilo de Allihanna e um minerador discutirem ferrenhamente diante das vistas do grupo, discussão essa que terminou com o nariz quebrado do minerador e a fuga do rapaz. Havia um druida de Allihanna entre os membros do grupo, e eu sabia que este conflito despertaria seu interesse. Prontamente os demais integrantes foram convencidos de que precisavam entender melhor o que estava acontecendo.

Encontraram-se tanto com a alta-sacerdotisa quanto com o líder da guilda, conversaram com alguns trabalhadores das minas e comerciantes. Descobriram que o jovem que havia quebrado o nariz do minerador era um recém-órfão temperamental e que, ao ser interrogado, inventei que ele havia agido daquela maneira pois tinha sido acusando de ter sabotado um carregamento de minério de ferro, trabalho que ele afirmava ter sido feito por demônios da ferrugem que amaldiçoavam o ferro em nome de Allihanna. Decidiram examinar o carregamento e encontraram o metal completamente apodrecido.

A construção de mundo no RPG é coletiva

O ladino sugeriu que a culpa poderia ser da sacerdotisa. Eu não havia pensado nisso, mas achei uma ótima ideia. A partir daquele momento, ela se tornou a culpada. Agora, quem decidiu inspecionar o carregamento foi a feiticeira, que rapidamente detectou rastros de magia na ferrugem. Interrogaram a clériga, mas não conseguiram prova alguma. Porém, durante a madrugada, o ladino desconfiado invadiu os seus aposentos e, com um lindo crítico em Investigação, encontrou as ferramentas para conjurar um milagre de transmutação que permitia alterar as características de qualquer metal, inclusive oxidá-lo até tornar-se pó.

Com as provas em mãos, viram-se diante de um dilema: acreditavam que a alta-sacerdotisa não era maligna, apenas via-se em posição de proteger aquela terra da influência pesada da civilização, e não seria facilmente coagida a abandonar este plano, ao mesmo tempo que sabiam que expô-la aos cidadãos e ao líder da guilda significaria seu exílio, prisão ou morte.

Depois de uns quinze minutos discutindo as possibilidades, decidiram entregar as provas para a própria sacerdotisa, alertá-la sobre os riscos que ela e seus pupilos corriam por seus atos imprudentes e deram as costas para a cidade. O grupo acabou percebendo que a trama de Rocha de Grís não era uma questão de bem e mau, certo e errado, e seria impossível resolver esta situação de maneira simples, ainda mais levando em consideração que haviam um compromisso importante dentro de poucos dias em um reino vizinho e que ninguém que habitava aquelas ruas de pedra cinzenta confiava minimamente em forasteiros.

O mundo ganha vida própria

A sessão terminou com os personagens se sentindo impotentes por não terem conseguido ajudar pessoas necessitadas, e com os jogadores reflexivos por compreenderem que nem todo problema se soluciona com aço e magia.

No início daquela sessão, tudo o que eu sabia era a geografia, cultura, economia, costumes, religião e política da região de Rocha de Grís. No final, tínhamos uma cidade muito interessante que o grupo ainda cogita retornar alguns níveis mais tarde para tentar, mais uma vez, prestar seus serviços à comunidade.

É muitíssimo importante ressaltar uma coisa que eu acredito ser essencial em qualquer mesa de RPG, mas obrigatória para que Rocha de Grís pudesse ter se desenvolvido desta forma em uma única sessão: a imersão dos jogadores dentro da narrativa e a vontade de, através da perspectiva dos seus personagens, explorar aquele universo. O RPG é, como disse anteriormente, uma narrativa formada coletivamente, e não apenas entregue pronta pelas mãos do mestre. Não é diferente com a construção de mundo, e o desenvolvimento de Rocha de Grís só aconteceu por que os jogadores tiveram curiosidade.

Para encerrar, é sempre bom considerar a possibilidade do grupo ter visto a briga entre o jovem e o minerador, respirado fundo e falado: “Dane-se, vamos ignorar tudo isso e continuar cavalgando em linha reta até o nosso objetivo”, e então metade do meu planejamento teria sido jogado para a patente sem descarga. Bem, caso isso tivesse acontecido, gostaria de lembrar que o Capítulo 7 do manual do Tormenta20 apresenta uma gama bem interessante de criaturas que poderiam dar cabo do grupo inteiro. E não seria um grande infortúnio se por acaso cada monstro aparecesse com dois ou três níveis a mais…